Escrito pelo moçambicano Mia Couto, A Confissão da Leoa não é o que se possa chamar de tradicional literatura estrangeira – se considerarmos como estrangeira as narrativas eurocêntricas e estadunidenses com as quais temos mais contato. Também não é uma literatura folclórica, apesar de se utilizar de lendas para desfiar os fios de sua narração. Trata-se de um tipo ambíguo, peculiar e familiar ao mesmo tempo, o que faz desse livro um objeto mais interessante para quem passeia por suas páginas.
A narrativa é simples, direta. Porém, as frases curtas e cheias de sutileza trazem significados tão densos e proporcionalmente fáceis de assimilação. A história é básica: um povoado esquecido está sob o ataque de furiosos leões – que mesmo destroçando corpos, somente de mulheres, pelo caminho, jamais são vistos. Para resolver o pânico, um caçador de nome Antônio Baleiro é chamado pelo ambicioso e covarde prefeito. Porém, Antônio já é conhecido dessas terras e deixou um passado amoroso enterrado vivo nesse lugar de sonâmbulos e aparentes autômatos humanos.
Uma trama que, se por vezes é contada de modo arrastado, compensa o leitor com uma alegoria do homem, da mulher, da sociedade e das relações mais básicas que construímos e destruímos por meio do poder da convivência. É esse mundo tão real e metafórico que faz do livro uma denúncia não didática dos abusos ao corpo e ao ser feminino, uma vingança do matriarcado que, de forma voraz e silenciosa, se rebela e destrói os venenos da masculinidade.
A Confissão Da Leoa é a alternância de relatos, os diários de Antônio Baleiro, o caçador, e Mariamar, a filha morta de uma terra cultivada por tradições bárbaras e patriarcais. Mia Couto, entretanto, deixa as revelações mais estarrecedoras para o final da história, uma estrutura quase que folhetinesca. Ao entregar a cereja do bolo no no término da festa me parece que o autor se se apressou em dar explicações que poderiam ter sido desdobradas se tivessem acontecido antes. Algumas das revelações, inclusive, são fechamentos de questões que sequer foram abertas.
Escrito como uma narrativa oralizada, o livro é um realismo fantástico que confronta o leitor - duvidoso de todo o misticismo folclórico que colore a narrativa, um leitor afogado na própria realidade material e que, por conta da naturalidade com a qual o livro é contado, passa também a duvidar da fantasia que é, quase sempre em sua completude, a literatura. Precisamos vestir de verossimilhança, pura e crua, uma narrativa para que ela seja considerada por nós como algo crível (?). A frase anterior não era uma pergunta, mas pode ser lida como tal.
A resposta, dizem várias teorias literárias, afirma que sim, precisamos. Minha recomendação, porém, é ler A Confissão da Leoa como a mais pura vertente do real, com todas as indignações possíveis que possamos e devamos ter frente aos horrores do subjugamento feminino.
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