Crítica: 'A Voz de Hind Rajab' é filme eticamente comprometido
- Matheus Mans
- há 4 minutos
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Há quem defenda que o cinema pode tudo. É a arte da experimentação, do teste de limites, da compreensão do ponto máximo em que nossas histórias podem chegar. Até concordo, mas com algumas ressalvas. Cinema precisa ter compromisso ético. Por exemplo, precisa tomar cuidado para não ferir emocionalmente alguém que já esteja comprometido. E é justamente esse o grande problema do terrível A Voz de Hind Rajab.
A história do longa, que foi ovacionado em Veneza, acompanha um grupo de voluntários do Crescente Vermelho que recebe uma chamada de emergência. Uma menina de 6 anos, Hind Rajab, está presa em um carro sob fogo em Gaza, pedindo resgate. Enquanto tentam mantê-la na linha, eles fazem de tudo para levar uma ambulância até ela.

A ideia do longa-metragem nasceu de forma abrupta e emocional para a diretora tunisiana Kaouther Ben Hania, durante um momento de transição em sua carreira. Em janeiro de 2024, enquanto promovia seu filme anterior, As Filhas de Olfa (Four Daughters, indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2024), Ben Hania estava em uma escala no Aeroporto de Los Angeles (LAX). Foi ali que ela ouviu pela primeira vez a gravação de áudio real de Hind Rajab, a menina palestina de 6 anos que ligou desesperadamente para o serviço de emergência do Crescente Vermelho Palestino, implorando por ajuda enquanto estava presa em um carro sob fogo em Gaza.
Essa gravação, que se espalhou de forma viral pela internet logo após a tragédia (Hind e sua família foram mortos pelas Forças de Defesa de Israel, junto com os paramédicos que tentaram resgatá-la), provocou uma reação visceral na cineasta. Em declarações à imprensa, como em entrevistas para o Deadline e o Hollywood Reporter, Ben Hania descreveu o impacto como uma mistura de impotência e uma tristeza avassaladora.
Ela abandonou imediatamente um projeto de ficção que desenvolvia há dez anos para se dedicar a este, transformando a urgência em ação criativa. É aí que vem o problema.
Com este áudio real, Ben Hania teria dois caminhos mais sensatos: ficcionalizar tudo, focando mais no atendimento e talvez sem ouvir a voz da menina presa no carro; ou, no que seria talvez a opção mais interessante, fazer um bom documentário em cima disso. Mas não. A cineasta opta por mesclar os dois: ficcionalizar a reação do atendimento da Crescente Vermelha enquanto deixa o áudio real da garotinha como um pano de fundo.
É óbvio que o filme é “importante”, urgente, necessário. Tudo isso é verdade em um momento que Gaza continua sendo destruída, mesmo com cessar-fogo. O genocídio precisa ser falado. Mas nada para além disso justifica a decisão da cineasta. A encenação toda da sala de atendimento de emergência é muito fraca, mesmo com a diretora tendo liberdade para criar algo que vá além das mesmas frases e burocracias repetidas a cada 5 minutos. A coisa não anda. É sempre a mesma fala, a mesma ação.
Fora que os atores estão mal em cena. Passam uma artificialidade que simplesmente não casa com a realidade brutal do áudio. Fica um filme com duas verdades, dois tons.
Mas o que mais pega é toda a questão ética envolvendo as gravações da garota que dá nome ao filme. É uma pessoa real, uma voz real. Funcionaria muito melhor em um documentário para denunciar os abusos de Israel, mas aqui ela é usada apenas como trampolim para a ficção que a cerca. Dá uma sensação inevitável de exploração e exposição de alguém que simplesmente não está ali — tudo bem que a mãe autorizou, mas não dá pra reverter essa sensação que, pra mim, aniquila o filme. Onde está a ética?
É preciso refletir sobre. De novo: o filme é "importante". Mas nada justifica o uso da voz da garota assim, como trampolim para uma ficção mequetrefe. Gaza precisa de mais do que isso. Ben Hania se mostra, de novo, como uma cineasta apenas mediana, sem nenhum grande atributo. Por isso, sempre digo: é importante desconfiar das reações de festivais. A ética passou longe de A Voz de Hind Rajab e ninguém falou sobre.






