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  • Domenico Minervino

Crítica: 'Bokeh' causa inquietação com trama brilhante


E se? Em Sobre a escrita, Stephen King nos ensina que uma grande história pode surgir justamente dessa pequena pergunta. E se alienígenas invadirem a Terra agora? E se as pessoas virassem zumbis ao levarem o aparelho celular ao ouvido? E se um herói descer ao inferno para resgatar a amada ou se embrenhar em um labirinto para matar o Minotauro? Vejam, esse artifício é uma boa “muleta” para se ter um bom argumento. Tudo pode acontecer a partir daí.

Em Bokeh, filme que estreou na plataforma de streaming Netflix há pouco tempo, a premissa é: e se toda a população mundial desaparecesse de uma hora para a outra e só restasse um único casal no planeta? Sim, sumisse. Interessante não?

Escrito e dirigido por Geoffrey Orthwein e Andrew Sullivan, a película brilhantemente cumpre o que promete. Imagino o quão difícil foi para filmar o vazio em grandes espaços habitáveis na Islândia, por sinal belíssimo país retratado em uma fotografia impecável de Joe Lindsay. Esse mesmo vazio sentimos em nós. As casas, os carros, as ruas, o supermercado, a igreja, o hotel, a natureza, tudo deserto. Não poderia ser diferente, as personagens também entregam esse sentimento ao espectador.

No começo, como um parquinho onde todos os brinquedos estão disponíveis, tudo é mil maravilhas. O mundo aos pés do casal. Nisso Bokeh é ótimo, pois nos faz pensar que poderíamos ser um daqueles dois. Quer um carro? Pronto, é só escolher qualquer modelo na rua, ligar e sair dirigindo. Todos os veículos são seus, não há ninguém que possa reclamar por ele. Quer uma casa? Simples, escolha a melhor moradia da cidade e ela será sua, já mobilhada, com tudo dentro. Não gostou? Pegue outra, todas são suas. Está com fome? A comida está lá, nos bares, restaurantes e supermercados. E o melhor, não é necessário pagar ou trabalhar por isso. Nesse mundo o dinheiro não tem valor algum. É assim que vemos Jenai (Maika Monroe) e Riley (Matt O’Leary), desfrutando do paraíso.

Mas (sempre tem um mas, não é?) dizem que o diabo mora nos detalhes. Qual a graça de se ter tudo e não precisar conquistar qualquer coisa? Brinque no mesmo brinquedo desse parquinho cinquenta, cem vezes e verá como isso será entediante depois de um tempo. Sim, o tédio. Corrosivo, mordaz, feroz e inquietante. Veja a mesma vista todos os dias durante semanas, dirija, durma, coma, faça de novo. Você terá o dia inteiro para isso (não há trabalho, chefe, rotina, metas, sonhos). Chato, o mundo agora é uma gaiola sufocante. Adão e Eva sofreram o mesmo mal. Olhem, o paraíso não é tão interessante por essa ótica e a serpente foi até um mal necessário.

Ainda não está convencido, não é? Pois bem, ficou tentado em poder ter tudo o que quiser o tempo todo e quem se importa com os outros. Mas saiba, desejamos aquilo que não temos. Lembra-se como desejou aquele celular de última geração e como foi difícil comprá-lo e como foi gratificante tê-lo nas mãos? E como se enjoou dele depois de uns seis meses de uso já pensando no novo modelo? O que sobra é o vazio. De que importa ter o melhor carro se não se pode gerar inveja no vizinho? Ou ter alguém para discutir o jogo de futebol da noite anterior? Nada importa. Que argumento brilhante encontramos em Bokeh.

Até que o casal encontra um velho chamado Nils, que é capaz de disparar o nosso pensamento com perguntas e mais perguntas. Então eles não estão sozinhos, quem é esse velho, ele é Deus, o casal está morto, o pessoal vai voltar, voltar de onde?

O enigmático Nils vem para apimentar a trama. Dois ou três minutos que farão o seu pensamento entortar. Dúvidas e mais dúvidas. Interessante? Muito. Ainda estou pensando no que ele diz. Como acaba a história? Bom, isso eu não posso revelar, mas posso dar uma dica: preste atenção quando Jenai observa a aurora boreal. É sutil, mas adianto, para que eu percebesse esse e outros momentos voltei várias e várias vezes o filme em diversos pontos. E não me arrependi.

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