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Foto do escritorMatheus Mans

Crítica: 'Graças a Deus' aprofunda questão de pedofilia na Igreja


François (Denis Menochet), Alexandre (Melvil Poupaud) e Emmanuel (Swann Arlaud) são três homens franceses que tocam as suas vidas, aparentemente, sem grandes problemas. Alexandre é pai de cinco filhos, bem casado e católico assíduo. Fraçois é ateu, mas também casado e com filhos. Só Emmanuel que vive de rolos e bicos, mas, ainda assim, tem uma vida agradável. O que une os três é um trauma do passado, quando foram abusados por um padre responsável por acampamentos e o catecismo.

A história desses três é o que move o longa-metragem Graças a Deus, novo lançamento do cineasta François Ozon (Dentro da Casa, Frantz). Ao contrário de Spotlight, que ganhou o Oscar ao mostrar os bastidores de uma investigação jornalística sobre uma ramificação de pedofilia nos Estados Unidos, Ozon vai na jugular do assunto e mostra o que acontece na vida adulta das crianças que são molestadas por essas figuras religiosas. O que acontece com a fé delas? E a vida sexual? Casam, têm filhos? Vivem?

A opção de colocar três protagonistas, com tempo de tela quase igual ao longo dos 137 minutos de duração, é o primeiro grande acerto de Graças a Deus. O tema é delicado e seria muito fácil de recorrer ao simplismo de retratar uma única pessoa lutando contra os seus demônios do passado e repleta de clichês -- com vida sexual fragilizada, problemas de relacionamento, extremismo religioso. Todos esses aspectos estão ali, sim, mas diluídos. São confrontados com outras características, amenizando o óbvio.

Alexandre, por exemplo, é o avesso do que qualquer um imaginaria sobre uma criança abusada por padres. Continuou na Igreja, incentivou seus filhos na confirmação de votos com a religião, é bem casado. Relances de seus problemas chegam em flashes esparsos. Enquanto isso, Emmanuel é o oposto -- não casou, tem brigas violentas com a mulher, possui disfunção erétil e coisas do tipo. François, por outro lado, segue um caminho intermediário: constituiu uma família, não pensava mais no crime que sofreu, mas também se distanciou enormemente da Igreja ao se declarar ateu.

É uma maneira impecável de construir a narrativa acerca dos acontecimentos. Mostra que um mesmo fato -- ainda que em intensidades e momentos diferentes, claro -- geraram questões distintas. Não é à toa que o filme potencializa esse sentimento quando junta os três protagonistas ao redor e uma mesma causa, um grupo de acolhimento de pessoas que foram abusadas, quando crianças, por esse mesmo padre. Cada um enxerga o grupo de uma maneira, pensando em estratégias bem diferentes.

A atuação do trio também ajuda a alavancar essa narrativa mais aprofundada e fora dos padrões. Denis Menochet (do excelente Custódia) faz um tipo que toma a questão totalmente para o lado pessoal, usando seu ateísmo como ferramento de provocação. É um ator ideal para o papel, já que também traz certa sensibilidade. Melvil Poupaud (Quando Margot Encontra Margot) faz o tipo mas contido, mas que consegue transbordar de sensações e emoções. Só com algumas palavras, gestos, olhares. Está bem dirigido.

Quem chama mais a atenção, porém, é Swann Arlaud (A Vida de uma Mulher) -- que, inclusive, veio ao Brasil para lançar o filme pelo Festival Varilux de Cinema Francês. Ele consegue construir o personagem mais complexo e difícil de compreender com calma. As camadas vão aparecendo aos poucos e o ator, também muito bem dirigido, impede que as emoções do personagem se atropelem. Ótima construção de um tipo pouco usual e que, no final das contas, ajuda nessa questão de desconstruir clichês sobre o tema.

No entanto, há um problema que surge quase que intrinsecamente às qualidades do filme: a duração do filme. Para contar a história de três diferentes protagonistas, Ozon acaba por produzir um filme com quase 2h20. A trama é lenta, com muita narração, e há vários momentos de ociosidade narrativa -- ainda que eles representem algo dentro da história. Isso, sem dúvidas, gera um desgaste natural da audiência, que vai cansando ao longo da experiência e, no final, não vê a hora que o filme acabe. Por melhor que seja.

Mas o brilho e o diferencial do filme ainda estão ali, apesar disso. Graças a Deus vai além da questão básica da pedofilia na Igreja -- muito, muito melhor do que Spotlight, já citado no começo do texto. Traz humanidade, quebra de clichês, aprofundamento de personagens. Mostra como tratar um tema que é tratado de maneira tão morna por aí, sempre com cuidados exagerados. É preciso escancarar esse problema. Ótimo filme, e que traz um François Ozon de volta à forma após o exagerado Amante Duplo.

* Filme assistido durante a cobertura especial para o Festival Varilux de Cinema Francês 2019.

 

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