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  • Foto do escritorMatheus Mans

Festival de Vitória 2023: Sobre pessoas e suas vidas represadas

Atualizado: 22 de set. de 2023


Um jovem de uma cidade do interior de São Paulo, Assis, tem que encontrar sua égua de estimação que novamente sumiu do sítio em que mora. Uma jovem perde o pai de forma brutal num assassinato nunca esclarecido pela polícia do Rio de Janeiro e tem que enfrentar a perda e a ausência anos depois num documentário sobre o triste episódio. Uma turma de jovens da periferia de Vitória, a maioria negros, se encontra numa das casas de um deles para falar das suas vidas e perspectivas antes do lockdown da Covid-19 em março de 2020. E um forasteiro tem que encontrar um irmão que nunca viu para resolver pendências familiares numa cidade do interior do Ceará depois da morte de sua mãe. Essas são as premissas dos três curtas e de um longa que passaram na segunda noite nas mostras competitivas do Festival de Cinema de Vitória.


As curadorias de longas e de curtas, que são diferentes, acertaram não somente na escolha dos filmes para esta edição do festival, mas também em colocá-los numa mesma noite. Eles se comunicam de diversas formas, mas tem a questão de vidas represadas como ponto comum em todos eles. São filmes que usam dessa premissa como elementos desencadeadores para contar suas histórias e traçar os perfis desses personagem que vivem o dilema de ter que enfrentar algo atravessou seus caminhos e precisam que eles se movimentem.


Os curtas que nos calam


Ainda Restarão nas Ruas do Interior Profundo, de Guilherme Xavier Ribeiro, conta a história desse jovem, Luquinha (Gustavo Rodrigues), que é avisado na saída do trabalho que novamente sua égua fugiu do sítio em que mora. Ele precisa localizá-la pela cidade de Assis, no interior de São Paulo, inclusive na sua parte mais nobre, uma rua de comércio e de desfile de carros caros dos emergentes do agronegócio.


O diretor faz dessa ação da procura do jovem pela sua égua para falar dessa região do agronegócio do interior de São Paulo com sua monocultura e latifúndios e da grande parte da população que vive às margens desse progresso, que só chega para os privilegiados consumistas de ocasião. É um microcosmo desses brasis antagônicos politicamente, economicamente e socialmente que se espalha pelo Brasil afora, mostrando o quão é difícil dividir a renda e a riqueza desse país esfacelado.

O filme mostra a religião de jovens periféricos desocupados e sem perspectiva de trabalho e melhoria de vida, tendo que se contentar com empregos precarizados e viver as margens da criminalidade. Na procura e no encontro do jovem Luquinha por sua égua, esses brasis se colidem e se distanciam cada vez mais, mostrando o fosso social e violento que nos separam.


Toda essa tesão é mostrada na cena em que a égua é localizada no meio da rua de Assis super movimentada com seus carros parados por conta do animal. Entre buzinas e reclamações, Luquinha e outros jovens que o acompanham, se deflagram com as disparidades e contradições do país e a falta ou possibilidade de diálogo e entendimento. Um filme em que a ação é uma metáfora para nossas mazelas.


Uma jovem perde o pai num assassinato no Rio de Janeiro nunca solucionado pela polícia, o que a leva a fazer anos depois um documentário a respeito desse episódio e da ausência do pai no eficiente E Nada Mais Disse, de Julia Menna Barreto. O discurso em primeira pessoa se organiza organicamente com os recursos de imagens e documentação mostradas, potencializado ainda mais quando a tela fica preta e escutamos a jovem e suas divagações a respeito dessa ausência.

Os anos que separam entre a perda e a feitura do documentário, ou seja, a ação do tempo, ajudam na objetividade e lucidez sobre a tragédia em que as emoções ficam mais controladas e dão equilíbrio ao relato tão doloroso em que o lirismo da ausência se mostra mais que a revolta de uma perda brutal e sem resposta.


Em O Último Rock, de Diego de Jesus, um dos representantes do Espírito Santos, faz um recorte bem interessante de uma geração, no caso, de jovens negros e pardos da periferia de Vitória, com sua falas e anseios típicos dela. Entre o naturalismo e um bem sucedido artificialismo de tornar algumas passagens em um falso documentário, o filme faz um retrato geracional eficaz dessa juventude preta e parda que vive sobre preconceitos, precarização de trabalho, dúvidas e baladas caseiras, e tentam transpor barreiras impostas pela má formação da sociedade brasileira.


Na aridez do desejo e da memória submersa


Um jovem chega num lugarejo do Ceará, em Jaguaribara, que outrora era uma cidade que foi inundada no começo do século XXI, por conta da construção de um reservatório, o que levou a retirada da população para essa nova cidade sem mais a convivência dos lugares que formaram seus habitantes neste antigo lugar no surpreendente Represa, de Diego Hoefel, o melhor filme que passou até aqui no festival, entre longas e curtas.

Usando uma câmera que acompanha seu personagem principal, Lucas, numa atuação convincente do ator Renato Linhares, por esse lugarejo árido e enigmático, o filme vai criando sua atmosfera de suspense pelos não ditos e pelos encontros desse forasteiro com seus habitantes locais, grande parte não atores que o diretor conheceu nas suas pesquisas para fazer o roteiro do longa. Ficamos sabendo que Lucas volta para essa cidade em que sua mãe nasceu e viveu parte da vida até fugir para casar com outro homem e que morreu recentemente, para tentar vender um terreno deixado por ela.


Na pousada em que fica hospedado, Lucas procura um guia para levá-lo na represa em que a antiga cidade está submersa, mas ficamos sabendo que o interesse são outros. Entra aqui o não ator Gilmar Magalhães na pele de Robson que faz um contraponto ao forasteiro Lucas, o que tensiona o mistério e o confronto no lugar de um confronto.


Nesses não ditos, o filme constrói uma atmosfera e suspense em que os desejos ficam prestes a romper suas comportas e transformar a vida de todos esses personagens que atravessam a vida de Lucas, inclusive a sua própria.


Nesse “Teorema” a la Pier Paolo Pasolini, em que um personagem chega num lugar e transforma a vida de todos, Diego Hoefel faz uma bela estreia com seu longa que foi um único filme brasileiro numa das mostras competitivas do importante Festival de Cinema Roterdã deste ano, na mostra de novos realizadores Brigth Future.

 

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