Olhar de Cinema e as encruzilhadas da curadoria
- Amilton Pinheiro
- 19 de jun.
- 9 min de leitura

Toda curadoria de festival de cinema tem como objetivo principal selecionar uma programação que traga bons filmes e produções que gerem reflexões sobre forma e conteúdo. E também filmes que não obedeçam às normas aceitáveis de uma narrativa cinematográfica, dando possibilidade para as experimentações e ousadias dos realizadores no trato de narrar, que é a vocação do Olhar de Cinema.
O Olhar de Cinema se estabeleceu e se consolidou apostando em filmes que ousam na maneira de contar e nas temáticas abordadas, ou seja, filmes mais plurais na forma e no conteúdo, o que é salutar no mundo em que vivemos, ainda mais em um país que se formou e se moldou pela exclusão de grande parcela da sociedade.
Por outro lado, os realizadores não podem esquecer da narrativa, da qualidade dramatúrgica dessa narrativa e da sua complexificação, mesmo que apostem em dispositivos não usuais dentro da norma estabelecida. As temáticas abordadas não podem subjugar as formas narrativas ou ser mais importantes que os dispositivos de linguagem.
Panorama Geral da 14ª Edição do Olhar de Cinema
Na sua 14ª edição, o Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, a curadoria do festival apostou novamente no ineditismo de suas mostras competitivas e na diversidade temática dessas produções, apostando em novas linhas narrativas.
Foram exibidos quase 100 filmes, entre curtas e longas, espalhados em diversas mostras e retrospectivas, com destaque para uma seleção da obra de uma das cineastas mais ousadas e singulares da história, Agnès Varda (1928-2019).
Mesmo que a curadoria pense na programação como um todo, suas energias e intenções se concentram no acerto de suas duas mostras competitivas: a nacional, com oito longas brasileiros inéditos, e a internacional, com seis produções, mesmo que o ineditismo seja apenas no Brasil.
Aurora: O Grande Destaque da Mostra Brasileira
Os oito filmes apresentados na mostra competitiva nacional oscilaram entre o regular e o mediano, com apenas um longa se situando bem acima: Aurora, de João Vieira Torres, com seu jorro de inventividade, rigor e deslumbramento.
Um jovem nordestino que emigrou para a França, o cineasta João Vieira Torres, em seu primeiro longa, Aurora, faz magistral ensaio sobre o "baú de ossos" de sua família pernambucana e de suas mulheres que sofreram violências e mortes de uma sociedade machista e patriarcal.

Ao voltar para Pernambuco, o diretor, que também sofreu por ser gay, faz um filme memorialístico não somente sobre os escombros dessa família tipicamente nordestina, como também junta os pedaços de sua própria história e do entendimento dos fantasmas que passaram a assombrá-lo no Velho Mundo.
Narrado em primeira pessoa, num texto incrivelmente bem escrito e falado, o diretor habilmente alterna paisagens, entrevistas e pessoas nesse filme rico em linguagem, imagens e em histórias familiares que revelam muito sobre a mentalidade dos brasileiros e das construções de seus valores arraigados e extremamente violentos, em um filme político e íntimo.
A Voz de Deus: Retrato dos Pastores Mirins no Brasil Contemporâneo
Um dos diretores mais instigantes dessa nova safra de realizadores contemporâneos brasileiros, Miguel Antunes Ramos, mais uma vez mostra seu olhar atento para as transformações importantes da sociedade brasileira ao mostrar o cotidiano de dois pastores mirins, um deles, hoje, já adulto, em A Voz de Deus (a gestação do filme durou dez anos).
Trabalhando com cinema direto e sem arroubos de linguagem, o documentário acompanha esses dois pastores e seus familiares em suas casas, viajando e/ou nos cultos dos quais participam, com poucas entrevistas, concentrando-se nas situações inesperadas que a câmera vai captando.

Análise Social e Religiosa em A Voz de Deus
Ao deflagrar esse fenômeno dos pastores mirins das igrejas neopentecostais, A Voz de Deus traz os impactos desse crescimento acentuado nos últimos 15 anos na política brasileira ao mostrar o perfil dessas duas famílias oriundas das periferias, mas não se aprofunda nos valores estabelecidos dessas famílias, que refletem e dizem muito sobre um tema importante e predominante na sociedade brasileira: as pautas de costumes.
O documentário é bem conduzido ao mostrar as expectativas que movem as famílias desses dois personagens: do jovem Daniel Pentecoste, que outrora fora uma criança prodígio da pregação, e João Vitor, uma criança pastora em ascensão, com suas ambições de uma vida material melhor para eles.
O documentário de Miguel Antunes Ramos ganha camadas e é mais habilidoso ao mostrar os sonhos não concretizados do pai de Daniel Pentecoste, que se frustra por não ver seu filho ascender como um pastor de sucesso. E ao revelar a visão crítica de Daniel aos neopentecostais cooptados pelo bolsonarismo, numa das cenas mais potentes do filme, quando ele sobe ao púlpito e questiona o entusiasmo dos membros de sua igreja naquele momento político, a vitória de Jair Bolsonaro, dizendo que estávamos longe de resolver os problemas que afligem o país.
Explode São Paulo, Gil: Entre Documentário e Ficção
Misturando os registros do documentário e da ficção, ou seja, do que é real e/ou do que é inventado numa narrativa cinematográfica, o filme Explode São Paulo, Gil, da diretora Maria Clara Escobar (Os Dias com Ele e Desterro), é um exercício bem interessante dessas fronteiras e das potencialidades que se pode tirar desses ensaios.
A história de Gil (Gildeane Leonina), uma diarista nordestina que sobrevive numa São Paulo que não descansa, sonhando em ser cantora profissional e poder gravar um disco, mas tendo que conviver com as limitações de saúde (tem ataques de epilepsia) e de grana, é contada o tempo todo borrando o que seja uma representação e um registro real das situações colocadas em Explode São Paulo, Gil.

O problema central do filme de Maria Clara Escobar é ficar preso demais a um filme-manifesto contra o sistema que explora grande parcela da população, tendo que fazer discursos repetitivos das mazelas do capitalismo ou apostando em improvisos e registros redundantes, como, por exemplo, nas duas cenas seguidas em que Gil canta no karaokê, o que soa como falta de opção ou projeto perdido no que quer atingir.
Torniquete: Cinema Paranaense em Destaque
Sendo o festival gerado e realizado dentro do estado do Paraná, a curadoria do Olhar de Cinema deve ficar satisfeita quando consegue colocar um filme da região na sua mostra mais importante, a competitiva nacional (neste ano, o festival trouxe quatro longas do Paraná espalhados em várias mostras).
Foi o que aconteceu com Torniquete, de Ana Catarina Lugarini, que em sua primeira direção de longa, apesar de já ter trabalhado com diretores experientes como Aly Muritiba e realizado curtas, conseguiu entrar na mostra principal do festival.

A diretora realiza um filme bastante rigoroso em suas qualidades técnicas e em sua dramaturgia, com uma história de mulheres – avó, vivida pela grande Marieta Severo, filha e neta – às voltas com as consequências de um assalto e das fissuras no convívio entre elas numa Curitiba bem diferente da de um cartão postal.
As três atrizes, além de Marieta Severo, Sali Cimi e Renata Grazzini, são bem dirigidas e defendem bem suas personagens, dando camadas e profundidade numa história cheia de lacunas e de simbolismos, num registro que começa com força no gênero do terror e termina enfraquecido quando vira um drama familiar, deixando fios soltos e inexplicáveis para as ações das protagonistas e o desfecho trágico de sua história.
Glória & Liberdade: A Primeira Animação na Mostra Competitiva
É comum que os festivais aqui e fora do Brasil virem uma espécie de "reduto" para alguns realizadores que conseguem emplacar seus filmes em mais de uma edição, como, por exemplo, Kleber Mendonça Filho, que foi selecionado três vezes para Cannes, a última em maio deste ano com O Agente Secreto, vencedor de dois prêmios: melhor direção para Kleber e melhor ator, para Wagner Moura.
A diretora Letícia Simões, que este ano apresenta a animação Glória & Liberdade, dentro da mostra competitiva brasileira, já teve alguns de seus filmes em edições anteriores do festival, o que pode explicar em parte sua inclusão na 14ª edição deste ano.
Marco Histórico: Primeira Animação de Longa na Competição
Por outro lado, é a primeira vez que uma animação de longa entra na mostra competitiva brasileira, o que é motivo de comemoração para todos que trabalham com esse gênero no país, já que o Brasil é reconhecido como um celeiro de talentos, inclusive conseguindo exportar diversos profissionais e trazer cada vez mais animações de qualidades técnicas e narrativas.
O que espanta na inclusão da primeira animação na mostra competitiva brasileira do Olhar de Cinema não é o gênero nem o reconhecimento artístico de sua realizadora Letícia Simões, diretora talentosa de documentários, alguns deles exibidos em outras edições do festival, mas a precariedade narrativa e técnica de Glória & Liberdade, ainda mais se tratando de um projeto reconhecidamente pensado, gestado e finalizado para passar em escolas públicas brasileiras pela importância de tratar de temas afro-brasileiros e de importantes revoltas populares durante a Colônia e Monarquia Brasileira.
Problemas Técnicos e Narrativos de Glória & Liberdade
Glória & Liberdade é excessivamente didático e falado em sua primeira parte, não dando fôlego ao espectador, que se obriga numa batalha inglória de acompanhar a verborragia das personagens numa proliferação enorme de informações, sem entrar na importância e méritos do que é dito.

Mais dois aspectos pesam desfavoravelmente a Glória & Liberdade: a precariedade do uso técnico da animação e das dublagens, que ficam artificializadas e não orgânicas, como se as falas partissem de outros lugares que não das bocas das personagens (há momentos em que as bocas das personagens nem abrem).
Mas na parte em que o futurismo "mangue beat" compõe a parte final da história, tanto a técnica quanto a dublagem, os traços e a paleta de cores, todos juntos, melhoram a qualidade da animação, com sua viagem sideral por um país em que os povos originários dão finalmente as "cartas" para sua "Ordem e Progresso".
Apenas Coisas Boas: Cinema Queer e Encerramento da Mostra
O segundo longa do diretor Daniel Nolasco (do provocante, sensual e queer Vento Seco), Apenas Coisas Boas, era muito esperado nesta edição do Olhar de Cinema, que o deixou para o encerramento, no dia 17, da mostra competitiva nacional, com lotação máxima da sala do Museu Oscar Niemeyer (MON).
Os dois temas que o diretor obsessivamente trabalha em seus filmes estão lá: a busca do amor e do desejo, que conduzem a história, entre espaços temporais, de dois homens que se encontram de maneira inesperada, após um acidente de moto com um deles, no interior de Goiás devidamente estilizado nos anos de 1980.
Com uma fotografia com tonalidades quentes, Apenas Coisas Boas revela dois personagens que desfilam seus belos corpos numa pulsação de desejos carnais em cenas explícitas de sexo, nessa jornada de um amor impossível numa paisagem edílica, à la O Segredo de Brokeback Mountain, uma das referências notórias do diretor.
Usando diversos gêneros, como o western, o suspense, o melodrama e a mistura deles, o filme trabalha de forma frouxa e desequilibrada sua dramaturgia e as composições de seus atores, soando superficial e sem camadas, não permitindo ao espectador adentrar na importância dos temas tratados e na maneira política que o diretor quer conduzir essa história queer.
Cais: Ensaio Poético Sobre Luto e Memória
Cais, o primeiro longa de Safira Moreira, é um bom e eficaz ensaio poético e imagético sobre a perda e o convívio do luto que advém dela, por paisagens, comidas, temperos e pessoas numa ação em que o tempo conduz tudo e todos para o mistério da morte e a ausência absoluta de quem partiu.

Em 2022, a mãe da diretora morreu, o que a levou à prostração e à tristeza absoluta, já que ambas tinham um projeto de um filme sobre a relação delas. O que fez a hábil e talentosa diretora repensar esse projeto e buscar a imortalidade de sua mãe numa jornada pelos lugares e coisas que revelassem o que ela representou não somente para ela e sua família, como também para as outras pessoas que cruzaram o caminho dessa mulher simples, tenaz e extraordinária.
Safira faz uma carta de amor de imagens e silêncios para sua mãe, conduzidos pelos afazeres, cheiros e paladares que testemunharam a vivência dessa mulher pela terra e de sua ancestralidade e espiritualidade.
Paraíso: Documentário Ensaístico Sobre o Brasil
Ana Rieper, diretora de documentários musicais Vou Rifar Meu Coração e Nada Será Como Antes – a Música do Clube da Esquina, se arrisca em Paraíso, um documentário ensaístico sobre o Brasil com suas contradições e desesperanças, com imagens de arquivos e entrevistas de gente simples que ascendeu socialmente, que tentam dar conta dos descaminhos e explicações para nossas mazelas mais profundas e insolúveis.
Nesse amplo painel irônico e desconcertante, Paraíso revela as histórias e estórias dos descalabros sociais do país e dos mecanismos e tentáculos da elite com sua mentalidade do passado que não cessa de ecoar fortemente ainda no Brasil contemporâneo, ordenados e condicionados a seu encanto destruidor.
Um jovem nordestino que emigrou para França, o cineasta João Vieira Torres em seu primeiro longa, Aurora, faz magistral ensaio sobre o “Baú de Ossos” de sua família pernambucana e de suas mulheres que sofreram violências e mortes de uma sociedade machista e patriarcal.
Ao voltar para Pernambuco, o diretor, que também sofreu por ser gay, faz um filme memorialístico não somente sobre os escombros dessa família tipicamente nordestina, como também junta os pedaços de sua própria história e do entendimento dos fantasmas que passaram a assombrá-lo no Velho Mundo.
Narrado em primeira pessoa, num texto incrivelmente bem escrito e falado, o diretor habilmente alterna paisagens, entrevistas e pessoas nesse filme rico em linguagem, imagens e em histórias familiares que revelam muito sobre a mentalidade dos brasileiros e das construções dos seus valores arraigados e extremamente violentos, em um filme político e íntimo.

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