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Resenha: 'O Homem Invisível' é obra imperfeita que revela o 'monstro interior'

  • Foto do escritor: Matheus Mans
    Matheus Mans
  • há 2 dias
  • 3 min de leitura

Confesso que comecei O Homem Invisível de H.G. Wells com expectativas completamente equivocadas. Imaginava uma aventura de ficção científica repleta de possibilidades fantásticas, talvez até com um protagonista heroico explorando os limites de sua condição extraordinária. O que encontrei foi algo muito mais perturbador e, surpreendentemente, muito mais interessante.


Logo de cara, Wells me pegou desprevenido com o humor que permeia especialmente o início da narrativa. A chegada do misterioso estrangeiro à pousada de Iping, todo enfaixado e temperamental, gera situações absurdas que o autor explora com uma ironia sutil e deliciosa. As reações dos moradores da vila diante daquele hóspede excêntrico são genuinamente engraçadas, e Wells constrói um suspense cômico que definitivamente não estava no meu radar quando peguei o livro. Esse começo sagaz me fisgou completamente.

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Mas a verdadeira surpresa veio com a natureza do próprio Homem Invisível. Griffin não é um herói atormentado por sua condição — ele é, sem papas na língua, um canalha absoluto. Violento, egocêntrico, cruel: um homem que mata sem remorso, chuta crianças e aterroriza inocentes com uma frieza arrepiante. Wells não romantiza a invisibilidade; ao contrário, a usa como metáfora para explorar o que acontece quando alguém se vê livre das amarras sociais e da responsabilidade moral.


Griffin acredita que sua invisibilidade lhe dá o direito de estar acima das leis e da humanidade comum. É fascinante e assustador perceber como o poder absoluto — mesmo que seja apenas o poder de não ser visto — corrompe completamente. O personagem não se torna monstro por causa da invisibilidade; a invisibilidade apenas revela o monstro que sempre esteve ali.


É curioso como o filme O Homem Invisível (2020), de Leigh Whannell, dialoga com essa caracterização do personagem de Wells. Embora a adaptação contemporânea tome liberdades criativas enormes e conte uma história completamente diferente — focando na perspectiva da vítima de um parceiro abusivo —, ela capta perfeitamente essa essência do Homem Invisível como figura de terror psicológico e violência desmedida. O filme moderniza e ressignifica o conceito, transformando a invisibilidade em metáfora para o abuso doméstico e o gaslighting, mas mantém aquela sensação de impotência diante de uma ameaça que você não consegue ver ou provar.


Reler Wells depois de assistir ao filme adiciona camadas interessantes à experiência. Ambos trabalham com o medo do invisível, do incontrolável, daquilo que pode nos atacar sem que possamos nos defender adequadamente.


Preciso ser honesto: minha experiência com o livro não foi linear. Se o início me conquistou com seu humor afiado e mistério crescente, o meio da narrativa me deixou exausto. Wells se perde em explicações científicas (pseudo-científicas, convenhamos) intermináveis sobre o processo de invisibilidade, e o ritmo despenca. Griffin monopoliza a narrativa com monólogos que, embora importantes para entender sua descida à monstruosidade, se arrastam mais do que deveriam.


Mas então chegamos ao ato final, e o livro ressurge com força total. O cerco a Griffin, sua fuga desesperada, os confrontos tensos — Wells recupera toda a vertigem e o suspense que faziam falta. As cenas finais são intensas, brutais e profundamente satisfatórias. O autor não concede ao protagonista nenhuma redenção fácil ou momento de heroísmo tardio. Griffin colhe exatamente o que plantou, e o desfecho possui uma justiça poética inegável.


O Homem Invisível não é uma obra perfeita. Tem seus tropeços narrativos, especialmente no segundo ato, e a caracterização dos personagens secundários deixa a desejar. Mas funciona, e funciona bem. Wells criou uma das premissas mais duradouras da ficção científica e a usou não para celebrar o maravilhoso, mas para questionar a natureza humana.


O livro levanta questões incômodas: o que faríamos se ninguém pudesse nos ver? Até onde iríamos se não houvesse consequências visíveis para nossos atos? Griffin é monstruoso, sim, mas será que é tão diferente assim de nós?


Mais de um século depois de sua publicação, O Homem Invisível permanece relevante justamente porque toca nessas feridas. É um clássico que merece ser lido, com todas as suas imperfeições e toda a sua potência. Afinal, clássico é clássico — e este aqui, com humor negro, terror psicológico e crítica social afiada, continua nos observando, mesmo quando achamos que ninguém está olhando.

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