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Resenha: 'Um Jogador', de Dostoiévski, é um retrato atemporal da compulsão e do desespero

  • Foto do escritor: Matheus Mans
    Matheus Mans
  • há 8 minutos
  • 3 min de leitura

Há livros que atravessam décadas e parecem ter sido escritos para o momento exato em que os lemos. Um Jogador, de Fiódor Dostoiévski, é um desses casos raros. Publicado em 1866, o romance captura com precisão inquietante a relação destrutiva entre pessoas e jogos de azar — algo que ressoa de forma especialmente forte no Brasil de hoje, onde as apostas online se tornaram um fenômeno de massa.


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A atualidade assustadora de Dostoiévski


O que mais chama atenção é como as ideias expostas no livro conversam demais com nossa realidade atual. Dostoiévski retrata personagens presos em uma espiral louca de apostas, tentando desesperadamente reverter situações financeiras que parecem não ter saída. Eles acreditam que a próxima rodada na roleta será a salvação, que basta mais uma aposta para tudo se resolver. Essa ilusão, esse ciclo vicioso, é exatamente o que vemos hoje com as apostas virtuais que tomaram conta do país.


A diferença é apenas o meio: no romance, são as roletas dos cassinos de Roulettenburg; hoje, são os aplicativos de celular e as bets. Mas a psicologia por trás é idêntica — aquela sensação de que a sorte está logo ali, de que é possível escapar da impossibilidade através de um golpe de azar transformado em fortuna. Dostoiévski entendeu profundamente esse mecanismo mental autodestrutivo, e é perturbador ver como sua análise permanece válida mais de 150 anos depois.


Personagens complexos e momentos memoráveis


Além da temática central devastadoramente atual, Um Jogador traz personagens fortes e bem construídos. O protagonista Aleksiéi Ivánovitch é fascinante em sua honestidade brutal — ele não se ilude sobre seus vícios, mas também não consegue escapar deles. Sua relação com Polina é marcada por uma dinâmica de poder e obsessão que deixa o leitor desconfortável e intrigado ao mesmo tempo.


[O protagonista] não se ilude sobre seus vícios, mas também não consegue escapar deles

Um dos aspectos mais divertidos é a ironia mordaz que permeia a narrativa. A síntese de Aleksiéi sobre o general que fica mandando cartas para a avó perguntando se ela já morreu é simplesmente genial. Toda a família aguarda ansiosamente a herança da velha senhora, fazendo planos mirabolantes com o dinheiro que ainda nem existe, enquanto ela surpreende a todos aparecendo vigorosa e... indo direto para o cassino dissipar a fortuna que todos cobiçavam. É uma crítica ferina e hilária à ganância e ao oportunismo.


Um olhar sobre a sociedade europeia


O romance também funciona como uma janela privilegiada para entender como Dostoiévski enxergava a sociedade europeia de seu tempo. Há um contraste evidente entre os russos e os europeus ocidentais, com o autor fazendo observações afiadas sobre os costumes, a hipocrisia social e a obsessão pelo dinheiro que dominava aqueles círculos.


Os personagens transitam por um mundo de aparências, onde títulos nobiliárquicos convivem com a miséria financeira disfarçada, onde todos fingem ser o que não são. O cassino se torna uma metáfora perfeita para essa sociedade: um lugar onde as máscaras caem, onde a verdadeira natureza das pessoas se revela na relação desesperada com o dinheiro e a sorte.


Um livraço que merece ser lido


Um Jogador é daqueles livros que confirmam por que Dostoiévski é considerado um dos maiores escritores de todos os tempos. Ele consegue ser, simultaneamente, um thriller psicológico, uma crítica social mordaz e um estudo profundo sobre vício e compulsão. A narrativa é ágil, os diálogos são afiados e a honestidade brutal do narrador torna a leitura envolvente do início ao fim.


Para quem vive no Brasil atual, cercado por notícias sobre o impacto das apostas online na vida das pessoas, ler Um Jogador é uma experiência ainda mais impactante. É perceber que os demônios que Dostoiévski descreveu no século XIX continuam vivos, apenas mudaram de roupagem. E que a natureza humana, com suas fraquezas, ilusões e buscas desesperadas por salvação fácil, permanece essencialmente a mesma.


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