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  • Foto do escritorMatheus Mans

Um mergulho no cinema de Ulrich Seidl, diretor da trilogia 'Paraíso'


Confesso que não conhecia o trabalho do austríaco Ulrich Seidl até assistir ao longa-metragem Safári, seu mais recente trabalho como documentarista. Ainda que o filme tenha alguns problemas claros de narrativa -- salientados aqui no Esquina --, a produção me chamou a atenção de maneira instantânea. Afinal, Seidl se revelou como um cineasta que não tem medo de chocar e deixa a gravação rolando em cenas fortes e chocantes.

Ao longo da última semana, então, me debrucei na obra do cineasta e descobri um tipo de cinema muito particular, de caráter autoral e independente, que consegue trazer à tela os aspectos mais sombrios, inusitados e pífios do ser humano. Tudo isso por meio de uma direção crua, sem firulas visuais ou narrativas, que evita usar até mesmo trilha sonora ou linguagens visuais. É a sociedade por si só, mostrando tudo de pior que ela pode criar.

Seu grande trabalho é a sensacional trilogia Paraíso, formada pelos filmes Paraíso: Amor, Paraíso: Fé e Paraíso: Esperança. Ainda que o último decaia um pouco em ousadia narrativa, o trabalho conjunto dos três é como uma orquestra; tudo fica em sintonia. O cerne narrativo é uma família: a mãe (Amor) vai pra África em busca de prazeres; a irmã () é uma religiosa fervorosa; e a filha (Esperança) é uma menina desiludida.

Com personagens se relacionando entre os três filmes, mas sem focar em uma única linha narrativa, Paraíso se aprofunda em diferentes temas que permeiam e obscurecem a sociedade contemporânea. Com uma forma de filmar quase documental, Ulrich provoca, seduz, instiga, choca. Não tem medo de criar situações que fazem virar a cara e causam um sentimento genuíno de repulsa, vergonha e desprezo, de tão reais que são.

A sua estética fílmica contribui para isso. Na maioria de seus filmes, os personagens -- sejam eles entrevistados reais ou peças ficcionais -- olham para a câmera em enquadramentos que parecem uma fotografia. O retratado, geralmente, quebra a regra dos terços e fica posicionado no centro da filmagem. É mais uma mostra de como suas histórias são controversas, incômodas, rebeldes. Até na estética, afinal, elas contrariam a ordem.

Além disso, o cineasta conta com meios de filmagem alternativos e que privilegiam cenas mais naturais. Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, ele contou que teve quase 90 horas de filmagem na trilogia Paraíso. "No início, há um roteiro que apresento para financiamento. Mas, quando começamos a filmar, não é necessário executar esse roteiro de forma servil. Em vez disso, ele evolui. Eu disparo em ordem cronológica e, quando vejo o que foi filmado no final de cada dia, isso determina a direção do resto do filme."

Acima, a similaridade de enquadramento entre a ficção 'Paraíso: Fé' e o documentário 'Safári'

Esse estilo muito particular -- e que parece algo que Lars Von Trier sempre tentou alcançar -- é oriundo de uma série de documentários que Ulrich desenvolveu ao longo dos anos 1990 e 2000. Ao assisti-los em ordem cronológica, é possível perceber uma crescente na forma que o cineasta retrata o ser humano, indo de algo um pouco mais explícito e sem delicadeza (Amor Animal, Models, Dias de Cão) para documentários bem mais trabalhados, reflexivos e complexos socialmente (Jesus, You Know e Importar, Exportar).

Até Michael Haneke, diretor de filmes como Amor e A Fita Branca, já ressaltou o quão incômodo é o cinema de Ulrich. Explicando a ausência de Seidl de Cannes no ano de 2007, quando produziu Importar, Exportar, Haneke comparou os filmes do conterrâneo a meias fedorentas. Para ele, os franceses não querem algo assim "em sua bela Croisette". Um elogio estranho, mas que ganha uma proporção tentadora vinda de Haneke.

E agora, passada a trilogia Paraíso, Ulrich está comandando documentários mais corrosivos e com ainda menos medo de chocar -- ainda que alguns veículos da imprensa afirmem que o austríaco está se tornando repetitivo. Em Im Keller, que não estreou no Brasil, ele mostra o que austríacos possuem em seus porões. No recente Safári, que citamos no começo do texto, ele mostra famílias caçando animais na África.

E assim, a filmografia de Ulrich vai se retroalimentando: os documentários mais recentes bebem da inspiração ficcional do cineasta, que passa a valorizar mais a vida e intimidade de cada personagem, enquanto as ficções se alimentaram positivamente dos primeiros documentários de Ulrich em termos visuais e práticos, ajudando-o a criar uma linguagem própria. É um caso raro de cineasta que transita entre narrativas sem cair num gênero cinematográfico óbvio, como é visto atualmente no Brasil com a força do neorrealismo.

Ulrich Seidl é, sem dúvidas, um cineasta como poucos. Não tem medo de exercitar sua própria linguagem e de criar narrativas que, claramente, não vão cair no gosto popular -- Safári e Amor Animal, principalmente, possuem sequências que são de revirar o estômago. Mas se você estiver disposto -- e tiver coragem -- vale a pena adentrar na filmografia do austríaco. É um cinema original, intenso, vivo, polêmico. É cinema de verdade.

 
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