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  • Foto do escritorMatheus Mans

Crítica: 'A Moça do Calendário' é explosão metafórica que se perde


Em determinado momento do longa-metragem A Moça do Calendário, o protagonista Inácio (André Guerreiro Lopes), numa discussão política, diz para um dono de bar que o Brasil "é surrealista". A frase pareceu a deixa para que a diretora Helena Ignez (Ralé), baseada num roteiro perdido de Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha), começasse uma metáfora narrativa sobre o tudo e o nada do País. Deu certo: o filme põe tanto surrealismo em suas entrelinhas que fica insuportável. Difícil chegar ao final.

A trama, aparentemente, conta a história do próprio Inácio, um mecânico e dublê de dança que vive uma vida complicada. O chefe é um carrasco, a esposa geme demais durante o sexo e o mundo parece não comportar seu sofrimento e a sua sede de viver. A única saída para o rapaz é sonhar acordado com a figura de uma bela mulher (Djin Sganzerla) em um calendário. É a partir desses sonhos que Ignez expande a ficção com ares surreais para toda a película, revestindo-a de figuras de linguagem do início ao fim.

É difícil acompanhar a história. Como a maioria dos filmes de Sganzerla, a narrativa vai e vem em arcos cheios de simbolismos e metáforas sociais -- neste caso em específico, muitas conotações políticas também acompanham o longa. O problema, porém, é que Helena Ignez, por mais talentosa que seja e por mais que conheça seu ex-marido, não é Sganzerla, que conseguia traduzir seus devaneios narrativos em beleza imagética -- como A Mulher de Todos. Falta a coesão entre texto e imagem em A Moça do Calendário.

A jornada de Inácio, por exemplo, por mais atual e relevante que seja, acaba se tornando demasiadamente confusa. São muitos entremeios para serem apreciados, interpretados e, por fim, compreendidos no contexto geral do longa-metragem. Pode ser burrice do que vos escreve, mas há uma sequência de Inácio numa espécia de banco de esperma que, após muita reflexão, não conseguiu fazer sentido -- além de algumas ideias muito esparsas. É excelente existir filmes pouco didáticos. Mas este é sem pé e nem cabeça.

Há, claramente, um desejo em Helena Ignez de resgatar aspectos de um cinema marginal brasileiro, deixando há muito para trás -- e que Rogério foi um expoente. Há, também, duras críticas que permeiam todo o longa-metragem. Há cenários e situações utópicas de um Brasil sem diferenças sociais, o papel da mulher e as contradições do mercado de trabalho. Mas tudo fica na superfície, desconecto. Falta uma grande trama central que una tudo isso além dos devaneios de Inácio. Falta, de verdade, um coração no filme, como o recente Animal Político, de Tião, tão bem conseguiu criar. E olha que é tão surreal quanto.

O que ajuda o longa a não se tornar, de fato, insuportável são três elementos: as interpretações, a trilha sonora e a ambientação. Sobre este último fator, Helena Ignez consegue escolher cartões postais fora do óbvio da cidade de São Paulo. Ela vai pro centro, pra periferia, para estações de metrô afastadas. É diferente ver isso na tela e sendo bem usado -- a crítica social ao ritmo da cidade, por exemplo, encaixa bem. A excelente trilha sonora, que vai de Juliana Kehl à Pixinguinha, também eleve o filme.

Mas são as atuações que salvam o longa-metragem de vez e, confesso, que me fizeram ficar até o fim da sessão. André Guerreiro Lopes tem um magnetismo muito próprio e parece que sabe perfeitamente o que a história quer dizer -- o que é louvável em A Moça do Calendário. Djin Sganzerla, filha de Rogério e Helena, também está bem, ainda que não tenha tanto espaço para crescer. Os amigos cultos de Inácio, da oficina, roubam toda a atenção quando aparecem. Estão naturais e dão um tom divertido, nonsense, ao longa.

No final, fica a certeza de que A Moça do Calendário é um filme bem intencionado. É louvável, afinal, o desejo de Helena Ignez em resgatar um roteiro perdido de Rogério, é louvável trazer uma crítica social num momento tão catastrófico para o Brasil e, também, é sempre bom ter experimentalismo no cinema, trazendo aspectos do cinema marginal. E é interessante notar que há espaço para filmes assim. Mas, infelizmente, por mais bem intencionado que seja, não é bom. É chato, disperso, sem uma união central ao redor da narrativa. Difícil de entender, de chegar ao final e trazer algo para si.

Talvez houvesse, afinal, um grande motivo para que este roteiro estivesse perdido.

 
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