Nos últimos anos, o cinema brasileiro tem entrado cada vez mais forte num movimento de misturar ficção e documentário, unindo-os em linhas bem tênues na tela do cinema. Foi assim com Corpo Elétrico, Elena e com o vindouro Baronesa. E agora, mais um filme entra nessa lista: A Cidade do Futuro, de Cláudio Marques e Marília Hughes, que levou o prêmio do festival BAFICI.
A história aparenta grandes proporções: Mila (Mila Suzarte), uma professora de dança no interior nordestino, engravida. E aí, ela toma uma decisão extremamente polêmica dentro de sua cidade: ao invés de falar o nome do pai, ela decide criar ele em conjunto com o casal Gilmar (Gilmar Araújo) e Igor (Igor Santos). Uma atitude moderna, mas vista sob maus olhos pelos vizinhos.
Para deixar a história mais intricada, a dupla de diretores, que também comandou o ótimo Depois da Chuva, também decide incluir a formação da cidade onde o trio principal mora, mostrando que a maioria das pessoas dali teve que sair de suas terras por conta da usina hidrelétrica de Sobradinho. Se não saíssem, o governo -- até então, militar -- afogaria quem precisasse.
Antes de tudo, Cláudio e Marília sabem como dirigir um filme. Isso fica claro com A Cidade do Futuro. Afinal, o trio de protagonista precisa de molde. Eles não são atores. E os dois cineastas conseguem deixá-los mais confortáveis em frente às câmeras para tornar a produção mais realista -- principalmente Igor que mostra muita dificuldade no início da produção.
O jeito que é tratada o tema da homossexualidade dos personagens também é um acerto: é natural, sem exageros, e mostrando como isso ainda pode ser um fator que muda a vida de pessoas da noite para o dia. Quem mora em cidades pequenas, certamente, irá se identificar com a narrativa.
Além disso, o filme conta com uma dualidade interessante e inteligente em seu roteiro. A cidade onde se passa o filme foi a que recebeu as pessoas expulsas de seus lares -- era a chamada Cidade do Futuro pelo governo militar. E agora, décadas depois, a mesma cidade está expulsando duas pessoas pelo seu modo de vida. O local que recebeu, dito do futuro, agora fecha os olhos.
Marília e Cláudio, porém, tropeçam. Essa dualidade explicitada logo acima é uma linha muito tênue e que pode, facilmente, passar desapercebida na maioria do filme e, em alguns momentos, nem faz muito sentido. Por exemplo: a dupla de diretores, várias vezes, coloca antigos moradores para darem relatos sobre a inundação de Sobradinho. É pouco natural e quebra a narrativa, deixando o toque entre as histórias exageradamente sutil. Precisava de mais força.
A relação entre o trio também é estranha e mal construída. É inventiva e interessante de ser abordada no interior da Bahia, mas parece que fica apenas na superfície. Não há cenas que aprofundem isso. As que tentam, de alguma forma, acabam ficando desgarradas do resto da narrativa.
A Cidade do Futuro, ainda que não seja excelente, é um filme que só mostra a força cada vez maior do cinema nessa mistura interessante entre ficção e documentário. Atores, direção, roteiro e trilha sonora (Jeito Carinhoso, da dupla Jads & Jadson, fica eternamente na cabeça) trabalham em harmonia para criar um filme urgente, complexo e completo. Pena que tenha os exageros e a falta de sinergia. Se tivesse ido para um caminho melhor, teria potencial de ser histórico.
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