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Crítica: 'Cloud: Nuvem de Vingança' é uma reflexão devastadora sobre capitalismo digital

  • Foto do escritor: Matheus Mans
    Matheus Mans
  • 14 de jul.
  • 3 min de leitura
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O cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa, reconhecido por sua habilidade em revelar o horror que se esconde nas estruturas cotidianas da sociedade contemporânea, entrega em Cloud: Nuvem de Vingança uma de suas obras mais penetrantes e relevantes. O filme, que estreia nesta quinta-feira, 17, transcende as expectativas de um thriller convencional sobre golpes na internet para se tornar uma análise implacável dos mecanismos que regem nossa economia digitalizada e suas consequências devastadoras nas relações sociais.


A narrativa segue Yoshii (Masaki Suda), um jovem operário que, sob o pseudônimo Ratel, complementa sua renda com trabalhos em e-commerce. Sua decisão de se aventurar no mundo da revenda online, vendendo produtos baratos por preços inflacionados, serve como ponto de partida para uma reflexão muito mais ampla. Kurosawa utiliza essa premissa aparentemente simples como porta de entrada para um comentário devastador sobre a natureza corrosiva do capitalismo contemporâneo.


A genialidade da abordagem do diretor reside em sua capacidade de identificar como os golpes digitais funcionam como uma metáfora perfeita para o próprio funcionamento do sistema capitalista. Yoshii não é retratado como um vilão tradicional, mas sim como um produto inevitável de uma estrutura econômica que já normalizou a exploração e a especulação. Sua transformação em "Ratel" representa menos uma escolha moral do que uma adaptação darwiniana às regras do jogo digital.


O verdadeiro horror do filme emerge quando a raiva dos clientes lesados se transforma em algo muito maior e mais perigoso do que uma simples busca por justiça. A vingança contra Yoshii se torna um catalisador para ressentimentos acumulados que vão muito além do dinheiro perdido. Pessoas que nem sequer foram diretamente prejudicadas, como seu antigo chefe, se unem à caçada, movidas por frustrações pessoais que encontram no jovem um bode expiatório conveniente.


Essa progressão narrativa expõe com brilhantismo como o capitalismo digital cria não apenas vítimas diretas, mas um ambiente generalizado de ansiedade e insatisfação. A desesperança de quem busca cartões de crédito para sobreviver, a frustração dos consumidores enganados e o ressentimento dos trabalhadores explorados convergem em uma explosão de violência que transcende qualquer noção de proporcionalidade ou justiça.

Kurosawa constrói seu comentário social através de uma estética deliberadamente fria e distanciada. Os personagens são retratados como figuras banais e ausentes, quase espectros de si mesmos, navegando por um mundo que os reduziu a meros dados em algoritmos de consumo. Essa escolha estilística, embora possa inicialmente alienar o espectador, revela-se fundamental para o projeto do filme, representando conscientemente como o capitalismo digital dessensibiliza e desumaniza.


Uma das observações mais aguçadas da obra é como o absurdo foi completamente normalizado em nossa sociedade digital. A facilidade com que pessoas comuns se transformam em justiceiros online, a velocidade com que rumores se espalham e se cristalizam em "verdades", e a naturalidade com que a violência é aceita como resposta legítima ressoam assustadoramente com experiências que reconhecemos de nossa própria realidade. Kurosawa demonstra uma compreensão profunda de como as redes sociais e plataformas digitais não apenas facilitam esses comportamentos, mas os incentivam ativamente.


O pessimismo do diretor em relação ao capitalismo digital não oferece soluções ou escapatórias. O filme apresenta um sistema em colapso que continua funcionando precisamente porque seu colapso se tornou sua forma normal de operação. Não há redenção possível para Yoshii, nem justiça real para suas vítimas, nem aprendizado para a sociedade que produziu toda essa situação. Essa ausência de catarse tradicional força o espectador a confrontar a realidade de que vivemos em um sistema que não apenas permite, mas requer esse tipo de exploração e violência para continuar funcionando.


Embora a escolha de retratar personagens como figuras banais e ausentes seja conceitualmente justificada, ela cria obstáculos significativos para o envolvimento emocional do espectador. A distância mantida entre espectador e personagens, embora tematicamente apropriada, às vezes funciona contra a própria crítica social que o filme pretende fazer. É um equilíbrio delicado entre comentário intelectual e engajamento visceral, e nem sempre Kurosawa consegue manter ambos em harmonia.


Cloud transcende seu contexto japonês específico para oferecer uma análise que ressoa globalmente. Em um mundo onde golpes digitais, justiçamento online e economia de gig se tornaram universais, o filme funciona como um diagnóstico preciso de patologias que reconhecemos em nossas próprias sociedades.


Suas limitações não invalidam suas qualidades essenciais: Kurosawa construiu um retrato devastador de uma sociedade que normalizou o absurdo e transformou a exploração em algoritmo. É uma obra que nos força a reconhecer que o horror não está nos monstros sobrenaturais, mas nas estruturas aparentemente banais que governam nossa vida cotidiana. Em tempos de polarização crescente e violência digital normalizada, funciona como um espelho necessário, refletindo de volta para nós a imagem de uma sociedade que perdeu a capacidade de distinguir entre justiça e vingança.

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