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Foto do escritorMatheus Mans

Crítica: 'O Milagre', da Netflix, questiona as histórias e crenças da nossa vida


Irlanda, século XIX. Anna (a novata Kíla Lord Cassidy) não come há quatro meses. A família, ao seu redor, já a vê como uma santa, assim como todo o vilarejo pobre que a orbita. Afinal, como ela estaria sobrevivendo se não fosse uma pessoa diretamente conectada com Deus? Uma santa, oras? Ninguém contava, porém, com a chegada da enfermeira inglesa Lib (Florence Pugh).


Essa é a trama de O Milagre, filme da Netflix que chegou ao catálogo nesta quarta-feira, 16. Dirigido pelo chileno Sebastián Lelio (Uma Mulher Fantástica), o longa-metragem fala, principalmente, sobre a relação dessa jovem em jejum com a enfermeira descrente. Mas nada de esquete religiosa por aqui: o filme é, na verdade, uma celebração desconfiada das histórias.


O Milagre, no final das contas, em momento algum é religioso ou tenta comprovar teses religiosas. Pelo contrário: o filme faz de tudo, desde sua primeira cena, para mostrar que essa não é uma história mergulhada nos milagres da religião. Lelio, para isso, abraça uma protagonista que nunca acredita na possibilidade de um milagre envolvendo a jovem Anna e sabe, sem dúvidas, que alguém a está alimentando sem que os outros saibam. Ela está ali para tentar desmobilizar essa armação e, se possível, salvar a criança de morrer de fome.

Assim, o novo longa-metragem da Netflix não fala sobre religião, tampouco sobre milagres. O Milagre é sobre histórias. Isso fica evidente logo na primeira cena, quando a câmera mostra o lado externo de um estúdio claro e moderno antes de entrar na Irlanda do século XIX. Lelio traça uma linha e mostra que está contando uma história sobre uma garota que, naqueles tempos, se transformou em uma história em movimento. Uma história que as pessoas queriam acreditar.


O que é isso senão Deus? Um escape para as dores mundanas? Anna era esperança, era fé, era crença de uma sociedade que acabava de passar pela Grande Fome. As pessoas daquele local não querem saber se é verdade ou não. Elas querem se salvar: de um lado, que podem sobreviver sem comer se houver comunhão com Deus; por outro, transformando Anna em uma espécie de influenciadora de sua época, arrastando multidões para vê-la e pedir por milagres.


Lelio pinça essa história, roteirizada por ele e por Alice Birch (do excepcional 'Lady Macbeth'), para falar sobre o ontem e sobre o hoje. No passado, durante a Grande Fome, acreditaram em uma garota que simplesmente conseguia sobreviver sem se alimentar -- e apenas uma enfermeira inglesa, vinda de fora, conseguiu perceber o absurdo daquilo tudo. Hoje, em qual história nós podemos nos apoiar para ver uma luz no fim do túnel? Qual absurdo nos sustenta?


O Milagre poderia ser mais ágil e ter uma estética menos batida. Se torna até chato, arrastando acontecimentos menores. Mas, com atuação marcante novamente de Florence Pugh (Não se Preocupe, Querida), o longa-metragem desenvolve uma ode às histórias, mostrando como elas são motores, mas que também nos atormentam e podem nos tirar de nossas realidade.

 

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