Diz a lenda que, certa vez, o deus Marte veio à Terra e encontrou o amor na figura de Reia Sílvia, filha do Rei Numitor. Ela engravidou e deu à luz aos gêmeos Remo e Rômulo. Só que não conseguiu criá-los. Afinal, Marte voltou ao panteão dos deuses e Numitor foi deposto pelo tirano Amúlio. Os dois gêmeos acabaram sendo atirados à esmo na correnteza do rio Tibre e salvos por uma loba que os encontrou, amamentou e protegeu até que um pastor da região os resgatasse. Anos depois, os irmãos iriam em busca de vingança pela desafortunada infância e, assim, fundariam a cidade de Roma.
Não é á toa, então, a escolha de título do novo longa-metragem do cineasta mexicano Alfonso Cuarón. Ainda que nada tenha a ver com tempos imemoriais, lobos ou fundações de cidade, o filme Roma fala sobre poder feminino, maternidade, busca por identidade. E para trazer todos esses elementos, conta-se a história de Cleo (Yalitza Aparicio), uma emprega doméstica responsável por cuidar das crianças e da casa de uma família de classe média no México que está passando por maus bocados nos anos 70. O pai, afinal, está indo embora e a mãe (Marina de Tavira) precisa cuidar dos filhos.
Cuarón, que já tinha mostrado qualidade em fantasias familiares (A Princesinha), releituras de marcos literários (Grandes Esperanças), road movies às avessas (E Sua Mãe Também), distopias (Filhos da Esperança), odisseias espaciais (Gravidade) e até franquias juvenis (Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban), mostra que tem habilidade de sobra e que sabe fazer Cinema -- esse mesmo, com C maiúsculo. Sendo o diretor, roteirista e diretor de fotografia do longa, o mexicano toma controle da trama e se exibe das mais variadas maneiras e imprime qualidade à trama tão singela, mas poderosa.
Há de se destacar, por exemplo, o benefício para Roma de ter um único diretor e diretor de fotografia. A câmera passeia com naturalidade e faz planos complexos, ajudando a colocar o espectador dentro da rotina daquela casa. Há brincadeiras semióticas, como a figura do avião que se repete a todo o momento, e outras que se mostram verdadeiras empreitadas. Seria interessante ver um making off para entender como Cuarón orquestrou cinco, seis e às vezes sete atores em cena -- incluindo crianças e cachorro. É uma mostra clara, por parte do mexicano, de que fazer cinema não é problema para ele.
O grande poder de Roma, porém, está na trajetória de Cleo. Ainda que a história da matriarca da família seja interessante e sirva de sustentáculo para o que se conta da empregada doméstica, Cuarón opta por concentrar tudo ao redor da jovem para mostrar várias histórias em uma só. Há a diferença de classes, as dificuldades do povo mais pobre, a invisibilidade das empregadas, as dificuldades sociais. São várias pequenas tramas e universos representados apenas na figura silenciosa e sofrível de Cleo, que vai vendo seus problemas e suas dificuldades se amontoarem na sua frente.
O melhor disso, porém, é que o roteiro de Cuarón não traz essa história com agressividade. São pequenos momentos que tomam um brilho imenso, também por conta da direção do cineasta, e que vão traçando esse cenário aos poucos. É a falta de informações por parte da patroa Benita (Clementina Guadarrama) sobre a sua empregada, a conversa franca entre as amigas, a péssima conduta de Fermín (Jorge Antonio Guerrero) quando confrontado por Cleo. É a cena da praia, poderosa por si só; ou a do parto, que soca o estômago de qualquer um que tenha coração. É uma trama aparentemente singela, mas que vai se mostrando crítica, forte e muito inspirada.
O elenco também consegue dar apoio à essa transformação narrativa, por mais difícil que seja. Yalitza Aparicio é um acontecimento em tela. Sabe deixar suas emoções sob uma aparência "dócil", mas que vai se revelando. Dá vontade de ver mais filmes com ela, que faz sua estreia em longas. Tavira (Cinco Dias sem Nora) e Clementina Guadarrama também se saem bem quando são exigidas pela trama. Difícil também não sentir raiva do personagem interpretado por Guerrero -- uma das péssimas figuras masculinas do longa. Só as crianças que soam levemente artificiais, com exceção do mais novo.
Ao final de Roma, difícil expressar os sentimentos que transbordam da tela. São sensações fortes demais criadas por Cuarón, que trouxe essa história de lembranças que surgiam de sua infância e adolescência no México. Por mais que haja certo distanciamento por parte de seu trabalho com o filme e algumas sequências sejam puro exercício de exibição fílmica, Roma é uma daquelas obras que marcam a história do cinema e que devem influenciar gerações de cineastas. E fica uma ponta de inveja do Brasil não estar sendo representado dessa maneira por aí, por mais que tenha cineastas tão talentosos quanto. Falta um empurrãozinho. Ou uma boa inspiração.
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