Que filme mais forte, intenso e provocativo é Saint Maud, produção britânica independente que chegou recentemente, sem muito barulho, ao vídeo on demand no Brasil. E é essa estreia brasileira na surdina não poderia ser mais triste, em um dos países mais intolerantes e que tem uma máquina religiosa por trás de uma emancipação cada vez maior dos preconceituosos.
Mas aqui, neste terror com tons de suspense da estreante Rose Glass, não acompanhamos nada que tenha a ver com a realidade perigosa do Brasil -- de fato, pelo menos. Afinal, a protagonista Maud (Morfydd Clark) é uma enfermeira que passou recentemente por algum trauma e, solitária na vida, acabou encontrando como saída a religião. No entanto, esse escape virou obsessão.
Ao longo de curtos 84 minutos de duração, Saint Maud vai nos mostrando essa jovem mulher lidando com seus demônios internos de maneira quase passível. Ela luta contra esse trauma do passado, que nunca sabemos exatamente o que é, enquanto transparece calma e serenidade. Dentro dela, porém, essas memórias entram em conflito. E, assim, Maud vai se penalizando.
O ponto de ebulição do longa-metragem de Glass, que chega à cena cinematográfica já com pedigree, está no encontro de Maud com uma nova paciente terminal sob seus cuidados, a forte e independente Amanda (Jennifer Ehle, de A Hora Mais Escura). Seus estilos de vida entram em rota de colisão. E a obsessão de Maud, tal qual uma Annie em Misery, vai se intensificando.
Ehle, sem dúvidas, é um dos pontos altos da produção, com uma personagem que transita entre o fim da vida e a celebração da existência. É quase como um "diabinho" no ombro de Maud, provocando inclusive reações sexuais -- algo muito destacado pelo roteiro e direção de Glass, inclusive na relação da protagonista com Deus. São momentos poderosos, com atuação forte.
No entanto, Morfydd Clark consegue ser ainda mais certeira em sua interpretação. A atriz, de Orgulho e Preconceito e Zumbis, fica na corda-bamba de uma relação complicada com divindades, principalmente por conta das idas e vindas do sentimento de culpa, arrependimento, sofrimento, êxtase e por aí vai. Sua atuação é a âncora de Glass. Pena que não foi reconhecida.
Por fim, podemos dizer que a cineasta tem uma condução quase que impecável em seu trabalho, lembrando o terror psicológico de filmes como A Bruxa e até mesmo Midsommar. Há certos momentos de horror na tela, mas o mais assustador fica por baixo de muitas camadas. A obsessão, o medo do fim e a finitude da vida acabam assustando mais do que grafismos.
Glass apenas derrapa em um momento ou outro, com alguns didatismos exagerados em uma trama redonda e uma sequência de horror gráfico que não se justifica. Mas o final, que coloca toda a história em perspectiva e questiona o fanatismo religioso com força em apenas uma única imagem, já flertando com tons psicológicos, é a cena do ano. Filmaço. Merece a sessão.
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