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  • Foto do escritorTamires Lietti

Crônica: A vida cultural na (in)controlável República Popular da China


Desde que tomei a decisão de me mudar pra China, sabia das inúmeras vezes que as ruas de Shanghai me deixariam de boca aberta. Me perguntei milhões vezes, ainda no Brasil, a quantidade de novas visões, sons e sabores que iria encontrar e, por mais que tentasse pensar em todas elas, jamais poderia chegar a um numero tão grande. E tão infinito quanto o numero PI.

Ainda sem nem mesmo ter colocado o pé para fora do gigantesco Aeroporto Internacional de Pudong, já me sentia imersa num mundo cultural completamente distante do qual cresci acostumada. Eu estava do outro lado do mundo, literalmente, e oficialmente no futuro. Afinal, são quase 12 horas a mais de fuso horário. Passaporte carimbado, eu estava oficialmente imigrando para a China e, ainda do lado de dentro, já comecei a reparar nos detalhes da cultura oriental.

Os letreiros mostravam atores e modelos que eu nunca ouvi falar. Os cartazes anunciavam séries de TV cujos nomes eu não podia interpretar e estreias de filmes que eu jamais poderia deduzir do que se tratavam. No meio de tantos, encontrei uma foto de Emily Blunt com o fundo vermelho. “Um Lugar Silencioso não foi censurado por aqui”, pensei. Mas o titulo continha caracteres que eu era incapaz de interpretar.

Fiquei pensando como seria a adaptação de uma cinéfila na China. Logo eu, que ia ao cinema toda semana, será que teria que encontrar uma outra válvula de escape para a rotina? Não queria precisar abdicar de algo que tanto gosto. Vou confessar que até hoje não consegui assistir Deadpool 2, pois o governo chinês não deixou o filme ser exibido por aqui. Não fiquei surpresa, já sabia que seria assim. Tenho que me contentar com o jeitinho brasileiro de burlar algumas regras: assinando o plano pago de um VPN que me permite fazer alguns downloads aqui e ali. Por favor, não contem isso para Xi Jinping.

O cinema estrangeiro na China é censurado, assim como uma grande parte das coisas que não são feitas pelas mãos dos chineses. Aqui ainda rola muito preconceito com o que há fora da República Popular da China. Para alguns, é um mundo interessante a ser descoberto. Para outros, os mais tradicionais, é ameaça. Das grandes. Eu não passo um dia sem ter alguém tirando foto minha ou comigo no metrô. Ser internacional é uma grande novidade por aqui. Apesar da imensa comunidade estrangeira de Shanghai, parece que os cidadãos locais nunca vão se acostumar com a nossa presença.

Falar português ou inglês no metrô é motivo para ter todos os olhos virados pra você. Então não me surpreende o peso que o cinema hollywoodiano deve ter em um lugar como esse, onde as pessoas ainda se chocam com alguém que não tem os olhos puxados e não sabe falar mandarim. Para o governo chinês, censurar alguns acessos é uma forma de controlar a população. Isso inclui o cinema, a internet, os livros e muito mais. O que, na minha humilde opinião de brasileira, é uma utopia. Não tem nada que impeça os chineses de assinarem um pacote de VPN também. Eu ainda não surtei de abstinência dos meus filmes e consigo acessar o WhatsApp e alimentar meu Kindle normalmente. Mas sei que, por aqui, estou fora da lei.

Porém, mesmo fazendo o máximo pra manter meu consumo cultural ocidental, vou confessar que em algumas manhãs que tive à toa, antes de me entregar ao trabalho de professora, inclusive aos finais de semana, acompanhei alguns episódios de uma série de TV que parecia bacaninha. Não é como se eu me recusasse a consumir o que tem por aqui. Muito pelo contrário, me interesso muito! Mas televisão é complicado porque não há opções de legendas e meu cérebro ainda não acostumou com a língua que é o mandarim.

Mas no cinema, é possível ver filmes chineses com legenda em inglês. Xi Jinping, muito obrigada pela inclusão para os internacionais! Mas, pra falar bem a verdade, acredito que a China tenha muito mais o que oferecer nas telinhas do que nas telonas. E quando digo telinhas, são telinhas mesmo. No metrô, diariamente e muitas vezes ao dia, chineses imersos em seus celulares esbarram em mim sem querer e me pedem 藉口 “jikou” (desculpa, em chinês).

Normalmente, carregam seus smartphones na horizontal e estão sempre assistindo alguma coisa que parece lhes tomar completamente a atenção e fazê-los esquecer que estão em uma estação tão lotada quanto a Sé em horário de pico. Me pergunto do que se tratam todos esses enredos e o que são todos esses personagens. Da última vez que me arrisquei a ver um dorama (novela coreana) gostei muito. Será que seria a mesma coisa? Não sei, mas o fato é que a cultura da cabeça baixa reina por aqui.

A China é um paradoxo cultural: ao mesmo tempo que controla a indústria, bombardeia a população com inúmeras produções no mundo do entretenimento. As operadoras de telefone não cobram do seu tráfico de dados o acesso aos aplicativos de vídeo como o QiYi, o YouTube chinês. Ou seja, é open de vídeo o mês inteiro! A única diferença é que todas eles são previamente aprovadas pelo Big Brother chinês.

Ando reparando também na quantidade de músicas melancólicas que existem por aqui. Tenho ido a bares com muita mais frequência do que ia no Brasil, já que aqui tudo é novidade. Como o metrô fecha cedo, sempre peco um Didi, o Uber chinês. Pasmem: o Uber também é censurado por aqui. A experiência de ir rumo a vida social de táxi na China é um tanto quanto confusa para meus ouvidos. Entro no táxi e a reação quase sempre é a mesma: chineses mais velhos percebem a ausência dos olhos puxados e se contentam apenas com um “ni hao” (que significa oi, em chinês) e param por aí. Fico feliz que eles sabem que provavelmente não saberia me comunicar com eles, pois me evita o constrangimento.

Os motoristas mais simpáticos se arriscam um pouco mais, alguns pedem fotos e vídeos com os “LAOWEI” (estrangeiros, em chinês) para mandar no WeChat, a rede social mais usada da China, já que o WhatsApp também não escapou da censura. Mas o ponto é que os chineses estão sempre ligados com um rádio ou um pen drive no carro, Porém, eu nunca pude ouvir uma musica estrangeira em um Didi e, segundo meu aplicativo, eu já completei 50 viagens ao longo desses 3 meses. Todas as músicas parecem românticas, saídas dos créditos de um filme do Nicholas Sparks. Não vou negar que as vozes são bonitas e as melodias encantam um pouco. Pena que não entendo sequer uma frase inteira. Aqui deixo um exemplo pra vocês entenderem do que estou falando.

E aí acontece o inesperado. Ao descer do Didi, seja qual for o destino para a noite de sexta, todos os bares e baladas de Shanghai estouram musicas internacionais. No Perry’s, um dos bares mais famosos e lotados da cidade, os chineses dominam os corredores entre as mesas fazendo uma espécie de street dance chinesa ao som de vozes como a de Jason Darulo, Post Malone e ate mesmo os latinos J Balvin e Luis Fonsi. Me pergunto se eles entendem o significado das músicas que os animam ou se sentem exatamente como eu ao escutar um hit chinês.

É interessante ver a clara divisão entre os gostos por aqui. Os mais velhos são típicos chineses, completamente imersos em suas culturas. O público mais jovem, frequentadores das muitas noitadas que Shanghai oferece, dão ibope para os “laowei” e ate mesmo aprendem a cantar. Dia desses pude ouvir duas amigas na mesa ao meu lado cantando Shape Of You com a letra na ponta da língua. E adivinha só quem também chegou por aqui? Nossa Anitta! Paradinha e Downtown nunca faltam nas playlists dos hot spots shangaineses. Eu me sinto em casa.

Pelo que pude perceber, a cultura aqui, apesar de controlada, é bastante acessível e também bastante acessada. Foi uma luta e tanto conseguir ingressos para a estreia de Kinky Boots na Culture Square de Shanghai. Muitos horários e dias já estavam esgotados. Para material de comparação, um bom lugar na segunda semana da peça em cartaz me custou 480RMB, o que seria equivalente a cerca de R$260. O cinema aqui, em média, sai por 30-40RMB, em torno de R$23. Quanto aos shows e atrações musicais, fiquei sabendo que a Mariah Carey vai tocar por aqui e o ingresso mais barato custa em torno de 380RMB, cerca de R$220. Julgo ser um tipo de diversão que cabe no bolso, sem contar os inúmeros bares com drinks e entradas gratuitas, até mesmo alguns típicos chineses que visam atrair a nós, os “laowei”, para o leque de clientes.

Minha próxima aventura cultura será um filme produzido por aqui. Espero achar uma sessão inclusiva com legendas em inglês, senão terei que me contentar apenas com as “figurinhas”. A grande verdade é que viver na China é driblar, todos os dias, a eterna utopia retrógrada ainda almejada pelo presidente. Na cidade mais segura do mundo e com o maior número populacional de todo o globo, me parece completamente sem sentido querer controlar a tudo e a todos. Sem sentido, utópico e impossível. Shanghai é uma cidade alta astral, repleta de informações a serem consumidas, culturalmente ou não. Não tem big brother algum capaz de fazer essa cidade parar. Se vocês sempre acreditavam que Nova York é a cidade que nunca dorme, eu digo mais: Shanghai nem mesmo senta pra descansar.

 
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