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  • Pedro Balciunas

'Roda Viva' é remontagem anacrônica de si mesma


Montada por Zé Celso Martinez Corrêa pela primeira vez em 1968, a estreia dramatúrgica de Chico Buarque, escrita um ano antes, converteu-se em um símbolo artístico pela liberdade. Com teatro invadido, cenários destruídos e atores agredidos em uma ação do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), Roda Viva foi logo censurada. Meses depois, era instaurado o AI-5, a consolidação do Golpe Civil Militar de 1964.

A tal roda viva é a ascensão e queda de Ben Silver, cantor-produto fabricado pela televisão e pela indústria musical. A história teria traços de epopeia não fosse a obsessão de Zé Celso em transformar a peça em versão dramatizada do cenário político atual. O que está em cartaz no Oficina hoje poderia ter qualquer outro nome, menos ser vendida como Roda Viva.

O teatro como manifestação cultural é de longe o meio mais vivo e político. É de seu caráter. E é este mesmo caráter contestador que permite, por meio do improviso, a inserção de alterações que dialoguem com o contexto histórico de sua montagem. Em 2016, Bacantes, do mesmo Zé Celso, foi símbolo contra os desmandos da farsa da Operação Lava Jato, cujos principais produtos foram o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e, posteriormente, a prisão do ex-presidente Lula. Lembro até hoje de como fiquei impressionado com a atualidade do texto e das interpretações que emulavam caricaturas sociais do hoje ministro Sérgio Moro e do governador João Dória Júnior, recém-eleito prefeito da capital.

Nas quase quatro horas de Roda Viva, lembrei da reflexão de um colega que mudou inclusive minha postura em relação ao obscurantismo que vive o país: precisamos, real e conscientemente, evocar o presidente da república (com letra minúscula mesmo) em todos os momentos de nossa vida? Creio que não, dada a toxidade emanada por figura tão nefasta. E longe de mim defender o simplismo da arte como válvula de escape para a realidade. Mas a tal roda montada por Zé Celso é um esquete de colagens da nossa desgraça cotidiana, misturando críticas mais que necessárias ao governo com personagens que parecem ter caído ali de paraquedas, como é o caso de uma imitação da menina Betina - que tem 22 anos e mais de um milhão em patrimônio acumulado. Mas é só isso. A amiga que me acompanhou e nunca tinha vivido o Teat(r)o Oficina se sentiu dentro de um stand-up gigante, por exemplo.

Figurinos e cenários são reformulações de espetáculos anteriores, especificamente dos excelentes Bacantes e O Rei da Vela: uma mistura de estética circense com um coro nu em cena - nu por nu mesmo, algo banalizado. Por falar no coro, Sylvia Prado sempre excelente, mesmo não estando entre as personagens principais (ela faz a Televisão). Me impressiona a força cênica dela, assim como a de Danielle Rosa e da capeta Joana Medeiros, excelente do início ao fim. Já Roderick Himeros, o protagonista Ben Silver, parece perdido, desconfortável e um tanto canastrão. Está ali de passagem, mesmo sendo o personagem principal.

Destaco duas cenas da peça que mostraram todo o potencial perdido dessa montagem: a primeira é a sequência na qual o Anjo (Túlio Starling) converte Benedito da Silva em Ben Silver com o auxílio da Televisão - Sylvia Prado e uma atriz que infelizmente não encontrei o nome - e do WhatsApp, personalidade sensacional de peruca verde e patinete, o verdadeiro simbolismo da contemporaneidade. Túlio Starling, aliás, está ótimo quando insere uma imitação tosca e à altura de Bolsonaro pai. Já a segunda é a disputa entre o grupo do agropop, com cantoras de feminejo, cantores de sertanejo universitário portando armas e a ilustre presença de Miss Veneno(mais uma ministra se bolsonaro em cena) contra o grupo do coro simbolizando povos indígenas e ribeirinhos. Uma clara referência a Os Sertões, de Euclides da Cunha, também montado pelo Oficina em outros tempos. Não poderia faltar também uma esquete de Damares Alves bradando contra a Disney e o "lesbianismo da Frozen".

Com entradas disputadas desde que estreou em 2018, Roda Viva é um anacronismo de Zé Celso que, ao tentar dialogar com a realidade do país, repete a si mesmo. A montagem, histórica por si só, não alcança o caráter artístico-social que poderia ter. Na ausência de um texto, o subtexto crítico torna-se um protagonista apagado e repetitivo.

 
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