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  • Foto do escritorTamires Lietti

Rodinha no Pé: Entretenimento e (a falta de) cinema no Sudão










Minha jornada entre o Egito e o Sudão entregou o perfeito sneak peek da real situação e um trailer preciso do que viria pela frente. Foram 40 dias de muita aventura, e o início desse período não foi nem um pouco sutil ao me preparar pra o que é o Sudão e o que o Sudão me entregaria.


A trajetória entre o Cairo e a Karthoum – a capital do país – deveria ser o que vem ao lado da definição de “aventura” no dicionário. São 12 horas de trem até Aswan (no extremo norte do Egito, berço da cultura Nubia) onde alguns ônibus saem semanalmente pra cruzar a fronteira, de um ponto tão remoto e no meio do nada que é preciso pegar uma van até lá. É incerto o número de horas que se espera até que o sonhado ônibus de fato comece a colocar as engrenagens pra funcionar. São horas e horas esperando os sudaneses carregarem todos os tipos de produtos dentro do ônibus, que vai com literalmente metade dos bancos abaixados para que as caixas caibam e, com sorte, as pessoas também.

O Sudão vive uma crise de quebrar o coração, mas estar lá e viver o país pelos olhos de quem lá nasce foi um dos maiores privilégios que já tive na vida. Um privilegio sem nenhum dos privilégios, se e que dá pra entender isso. Eu passei mais de um mês dias driblando a falta de energia, as baratas nos quartos, o assédio, a pobreza e a sensação dilacerante que ela me causava, e a água amarela tanto pra beber quanto pra tomar banho. Meus dias no Sudão foram uma verdadeira aula de economia, história humanidade e a falta dela.


O histórico de golpes militares no país não é dos mais atraentes, mas, desde a separação Sudão/Sudão do Sul, o (apenas) Sudão sofre uma crise econômica avassaladora. Os índices de inflação chegaram a passar do 70%. O país que é casa de um dos portos mais velhos do continente africano e do mar vermelho, hoje se afoga num cenário onde nada chega pra eles. O acesso ao território sudanês é complicado, o que faz com que os preços no país tripliquem e as condições econômicas se degenerem a cada ano que passa. Lembra do ônibus lotado de mercadorias e das horas necessárias para colocar as caixas lá dentro? Então.


Todo dia há sudaneses quem embarcam em uma verdadeira saga pra comprar mercadorias no Egito. O preço e melhor, há mais variedade, e o trajeto compensa. Compra-se de tudo. Comigo no ônibus haviam dois fogões, muitas TVs de tela plana, incontáveis caixas de suco em pó, fermento, detergente e sabão de roupa. Haviam também umas boas caixas de ventiladores, uma máquina de lavar e malas velhas lotadas de sei lá o que. Ah, e claro, sem esquecer as pessoas, que se espremiam entre a prioridade: os produtos comprados a preços melhores e mais justos, sejam pra uso próprio ou pra revenda. Contando comigo, acredito que meu ônibus levava no mínimo 20 sudaneses de volta ao Sudão. A jornada é quente, alta (a música sudanesa não e muito relaxante...) e repleta de olhares curiosos. Por dois dias eu fui uma verdadeira celebridade. Fico me questionando a quantidade de vezes que de fato questionaram minha presença ali. Virei piada, mas no sentido bom da coisa.

A imigração por terra no Sudão é cansativa e testa limites. Fiz uma noite de sono completa no chão da sala de imigração, mesmo com já todos os "trâmites" feitos porque os ônibus costumam parar por pelo menos 24 horas pra inspeção. E ainda com as taxas, compensa para os sudaneses emigrar para o Egito para comprar. Impressionante. Eu fui premiada com um ônibus que não saiu nem depois de 24 horas porque alguém teve problema com as taxas de importação. Foi no beliche de dois caminhões diferentes que consegui chegar até a capital. Comi e trabalhei na beira da estrada enquanto caminhoneiros dividiam um momento de chá ou faziam suas rezas. Conheci um policial legal que me doou um chip de celular. Me sentia em alerta constantemente, mas paradoxalmente fascinada com tudo que estava vivendo.


Eu (quase) fui roubada direto do bolso por um garoto que andava pela rua amordaçado. O pano com cola de sapateiro é adorno de muitos na região central do Sudão, pois disfarça a fome. E fui (de fato) roubada por outro garoto de aparência semelhante e que dividia com o primeiro menino muito provavelmente não só apenas a aparência, mas a realidade também. O centro de Karthoum é repleto de colchoes e tendinhas improvisadas, é preciso andar extremamente atento. Um olho na frente outro atrás, como dizem por aí.


Eu lembro do Sudão com uma mente e um coração lotada de gatilhos, não vou mentir. Não foi uma jornada fácil, mas foi uma jornada incrível. Com os pés no ponto exato onde os Nilos se cruzam, me senti invencível e romanticamente pequena. Minha viagem ao Sudão me convidou pra uma jornada que até hoje não terminou. Eu até hoje não entendi como meu cérebro processou o Sudão e tudo que eu vivi lá. Eu não quero ser aquela jornalista sensacionalista que vende o Sudão como um país afogado em miséria, apesar de ser. Eu não quero só falar dos incontáveis camelos mortos na beira da estrada, dos hotéis dignos de filme de terror ou dos olhares que me davam muito medo. Eu também quero falar daqueles que me estenderam a mão. Dos caminhoneiros bem humorados que garantiram que eu chegasse ao destino final mesmo sem falarem uma palavra em inglês. Do almoço improvisado com um deles e de como ele me ajudou a usar as instalações do caminhão pra fazer meu miojo. Das inúmeras vezes que me juntei aos tapetes colocados nas ruas por famílias que serviam suas refeições Iftar (a refeição que quebra o jejum praticado no mês do Ramadã) e faziam gestos me apontando um lugar vazio. E ai de mim se eu recusasse, uma verdadeira desonra! Quero e prefiro lembrar dos cafés diários (e olha que eu nem gosto de café) com aquela pitadinha típica de algum tempero entre canela e gengibre que nunca consegui decifrar. Das caminhadas no escuro com carnes expostas e muita música de fundo, do senhor da vendinha que eu sempre ia pra comprar leite e bolinhos do tipo “Ana Maria”, de todos que não me deixaram pagar pelos vegetais que comprei em um ato de hospitalidade e do melhor falafel que eu já comi (que é amarelo, não verde!).

Eu conheci pessoas incríveis e cruzei meu olhar com sorrisos muito simpáticos. Durante minha jornada no Sudão. Peguei muita carona na avenida principal de Karthoum pra ir de leste a oeste dela, já que o serviço de taxi também e escasso e os preços são levemente abusivos. Eu vi sim um Sudão simpático, sorridente e simples misturado com um território que luta pra sobreviver sob o calor de 42o (ou mais) e inundado por extrema inópia.


Então eu peço desculpa, meu caro leitor, acho que meu texto hoje saiu pela culatra. Não é sobre cinema, e só sobre o Sudão mesmo. E um convite a você que quer saber mais sobre “esses países” que pouco aparecem pra nós e uma história que pra você passar pra frente ou imaginar do seu jeito. Mas, pra não perder o costume, termino meu relato com um convite a uma reflexão que venho retomar numa próxima: num país onde falta energia todos os dias, se não por dias consecutivos, quantas salas de cinema funcionais será que há por lá? Que tipo de conteúdo digital entretém crianças, famílias, ou pais cansados em um domingo a tarde? Que parte do que chamamos de “informação” de fato chega no Sudão? E os sudaneses, como são afetados por tudo isso (que falta)?


* Tamires é jornalista e viaja pelo mundo todo. Para saber mais, no Instagram @cacetames.

 

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