Na trama de Mormaço, elogiadíssimo aqui no Esquina, duas histórias falam sobre um mesmo tema: a falta de pertencimento. De um lado, a advogada Ana (Marina Provenzzano) vê seu prédio ser destruído aos poucos para dar lugar à um hotel de luxo que quer lucrar com as Olimpíadas. Do outro, Domingas (Sandra Maria) é a líder de uma comunidade que tenta reverter a desapropriação criminosa do governo sobre a Vila Autódromo, numa política higienista. E, para tecer essa narrativa no cinema, a diretora Marina Meliande foi revisitar o realismo fantástico que a consagrou nos últimos anos.
"A primeira vontade de escrever Mormaço surgiu quando houve o anúncio de que o Rio ia sediar as Olimpíadas. Muito rapidamente, vimos a cidade sofrer um processo violento e intenso de transformação. Sem mediação, sem consulta pública", comenta a cineasta, diretora também de A Fuga, a Raiva, a Dança, a Bunda, a Boca, a Calma, a Vida da Mulher Gorila e A Alegria. "Queria partir de uma personagem feminina que estaria se sentindo expulsa de seu lugar. Ela desenvolveria uma doença, uma reação no corpo, como processo de transformação conjunta da cidade. Vira uma metamorfose do corpo."
A partir dessa ideia, Meliande foi atrás de possibilidades. Rapidamente encontrou a atriz Marina Provenzzano (Legalize Já) como sua protagonista. E, ao fazer uma ampla pequisa de casos parecidos com o que contava, encontrou Sandra Maria como sua coadjuvante perfeita. Afinal, a história de Domingas, a mulher que lutava pela permanência de uma comunidade frente à política higienista do governo, estava ali, acontecendo ao mesmo tempo que o filme era pré-produzido. Sandra era Domingas e vice-e-versa. Uma mulher que lutava pelo seu pertencimento na transformação do Rio.
"Eu faço parte desse grupo de resistência na Vila Autódromo. Mas também já havia feito alguns trabalhos no teatro e, por isso, acabei recebendo o convite para o filme. Era emocionante gravar Mormaço. O que acontecia nas telas, acontecia também na minha vida", conta Sandra, em entrevista ao Esquina. Na época da filmagem, as ameaças da prefeitura estavam se intensificando e, dessa forma, era até difícil sair de casa ou dormir. A casa de Sandra e as de seus vizinhos poderiam ir ao chão a qualquer minuto. "A comunidade acordava com a tropa municipal, fardada e armada, para nos tirar de lá."
Atualmente, a Vila Autódromo se resume a apenas uma rua. Afinal, ainda que um grupo tenha resistido, muitos partiram e a situação do local parecia com a de um "pós-guerra". Mas a ameaça ainda ronda o local. "Ainda estamos de olho no nosso futuro", diz Sandra.
Realismo Fantástico em 'Mormaço'
Para contar essa história, Meliande abraçou o realismo fantástico e partiu para o estilo que, felizmente, está cada vez mais em voga no Brasil. Segundo ela, não havia outra maneira de contar a história de Mormaço. "Era preciso usar o formato de fábula para o filme", disse a cineasta ao Esquina. "Precisava começar realista, para que as pessoas se identificassem, e depois entrar na magia e encontrar um pouco de poesia nessa história. É utopia, sonho e resistência. É o que o cinema pode nos dar nesse momento sombrio."
Além disso, Meliande concorda com a cineasta Gabriela Amaral Almeida que disse, ao Esquina, que a fantasia e o horror são formas de resistência. "A gente pode imaginar futuros, fazer convites para coisas que não vimos", disse a responsável por Mormaço. "O fantástico vai nos ajudar a achar uma poesia numa realidade muita dura. Não precisamos, afinal, ficar só na dureza do dia a dia. E o terror nos coloca com os pé no chão. As coisa podem ficar piores com o passar do tempo. Mas a reflexão está aí."
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