É a primeira vez que venho ao Festival de Cinema de Vitória, que este ano completa 30 anos de existência de forma ininterruptas, que já é algo que deve ser mencionado e comemorado (apenas duas edições aconteceram de forma on-line por conta da pandemia em 2020 e 2021), pois sabemos como é difícil levantar verbas, grande parte pública e de empresas estatais, para realizar um evento como este.
As primeiras impressões são positivas: é um festival bem organizado, com uma boa estrutura e equipe, material de divulgação entregue no primeiro dia, uma boa sala de projetação, no lindo Teatro Glória, no Sesc Glória, no centro da cidade capixaba. O festival, que começou na noite do dia 18, com a abertura das mostra competitiva nacional de longas e exibições de filmes de curta-metragem capixabas (Foco Capixaba), se estenderá até sábado, 23, com a entrega dos Troféus Vitória para os vencedores das diversas mostras, além de curtas e longas nacional, tem as mostras Quatro Estações, Foco Capixaba, já mencionada, Corsária, Outros Olhares, Cinema e Negritude, Mulheres no Cinema, Videoclipes, Cinema Ambiental, Do Outro Lado – Cinema Fantástico, Cinema de Bordas. Ainda tem as Sessões Especiais, a Mostra “A Cinemateca é Brasileira”, uma importante parceria com a Cinemateca Brasileira de São Paulo, com a exibição de cinco longas produzidos entre 1929 a 2022, que vão dos clássicos do cinema nacional, como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, passando pelo nascedouro do nosso cinema brasileiro, o emblemático Sinfonia da Metrópole, de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny, a obra prima de Eduardo Coutinho, Cabra Marcado para Morrer até um dos filmes da nova safra de realizadores negros do cinema brasileiro, Marte Um, de Gabriel Martins.
Vasto e Diverso
É de fato uma edição comemorativa e grande. Foram inscritos 1.226 produções, sendo 1014 curtas e 212 longas, espalhados por diversas mostras, além das sessões especiais, do Festivalzinho de Cinema de Vitória, filmes direcionados para o público infantil e uma homenageada local, a poetisa e atriz Elisa Lucinda, que nasceu no estado do Espírito Santo, e receberá o Troféu Vitória e um caderno feito em sua homenagem, trazendo um perfil biográfico e seus principais trabalhos como poeta e atriz. “Estou me sentindo tão importante sendo homenageada no Festival de Cinema da minha terra. Sempre quis ser um orgulho capixaba. Não adianta fazer sucesso no mundo inteiro sem receber o aplauso da geente, sem o amor da aldeia”, disse ela para a organização do festival.
Sessão de abertura, entre a organização e curtas bem irregulares
A sessão de abertura foi bem organizada e menos cansativa, como é de se esperar, já que têm muitas falas dos patrocinadores, o que sabemos ser necessário, dos organizadores do festival, dos realizadores e equipes presentes e dos apresentadores. Mas tudo foi de uma certa forma na medida certa, o que não atrapalhou as projeções dos filmes da noite (cinco curtas da mostra Foco Capixaba) e o longa da mostra competitiva, Incompatível com a Vida, de Eliza Capi, que não estava presente e foi representada pela produtora executiva Mariana Genescá. Os cinco curtas da mostra Foco Capixaba tratam de assuntos bem diversos, indo da inocência da infância e as primeiras descobertas, tema de dois curtas, passando pelo legado e aprendizado de um jovem negro ao longo da história da civilização, na animação, até temas mais pesados e complexos, como as obras inacabadas, a falta de memória num filme performático até um dos transtornos mentais, o transtorno bipolar e suas sequelas, o melhor curta dos cinco. O problema dos cinco curtas é a falta de um roteiro e de coesão que tratassem dos temas propostos sem deixar os “furos” da narrativa e uma dispersão, sem falar na falta de propostas estéticas mais ousadas, com exceção do curta Mangata – Todas as Fases da Lua, de Marcella Rocha, que na apresentação do filme falou de como sofreu com a falta de um diagnóstico da sua bipolaridade, que ousou na estrutura narrativa do curta com imagens de filmes e outros materiais imagéticos para falar desse transtorno tão presente na sociedade atual, de qualquer idade, que é um dos que mais levam as pessoas ao suicídio.
O longa de Eliza Capai, Incompatível com a Vida, que venceu o Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, de São Paulo, em abril, trata de um tema bem delicado, sobre mulheres que têm que interromper suas gestações por conta da má formação congênita do cérebro, anencefalia, o que gera todo tipo de polêmica em relação a legalidade de abortar dessas mulheres.
Partido da própria experiência, a diretora documenta todo o dolorido processo da interrupção de sua gestação quando morava em Lisboa, Portugal, e amplia suas lentes para conversar com outras mulheres brasileiras que passaram pelo mesmo drama, o que cria uma salutar polifonia para um assunto tão complexo e cheio de tabus e preconceitos da sociedade.
O filme é bem estrutura na forma como vai contar essa história, usando imagens caseiras da diretora durante a sua gestação, suas conversas com o companheiro, um português, e um médico, entrevistas com outras mulheres e imagens filmadas “ficcionalizadas” para compor esse mosaico de dores, dúvidas e quase loucura.
Outro importante acerto do filme, é seu tom político, foi filmado durante a pandemia de Covid-19 e o nefasto governo do presidente Jair Bolsonaro, mostrando a falta de uma política pública que atenda essas mulheres e proteja suas vidas e saúde mental nesses momentos tão doloridos sem a hipocrisia religiosa e comportamental.
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