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  • Foto do escritorAmilton Pinheiro

Hermínio Bello de Carvalho, o timoneiro da memória cultural do país


No fim da década de 1970, o jornalista Aramis Millarch foi bater na porta do letrista, poeta, cronista e agitador cultural, Hermínio Bello de Carvalho, para ele participar da Associação de Pesquisadores da MPB, que ele estava criando naquela ocasião. Mas HBC recusou de prontidão, deixando Aramis magoado por algum tempo, segundo conta Hermínio no livro Passageiro de Relâmpagos: crônicas friccionais e perfis inexatos (Edições Sesc), que está sendo lançado agora nas comemorações “tardias” dos 70 anos de carreira desse “timoneiro da memória” e 88 anos de vida, que achava que não chegaria aos 40 anos.


Em resposta ao amigo jornalista Aramis Millarch, como escreve no livro, HBC disse: “(…) apresentei a justificativa que mantenho até agora: pesquisar requer conhecimento, metodologia, e sou um escarafunchador de fatos, um noticiador de coisas que vi acontecerem diante dos meus olhos, um mero remexedor de gavetas”.


E que escarafunchador de fato, que noticiador de coisas, que remexedor de gavetas, e que privilégio para todos nós, para o País, para o planeta, ter um artista dessa envergadura, que passou as últimas sete décadas criando e divulgando nossa memória cultural, com músicas inesquecíveis e parcerias invejáveis como Cartola, que ele chama de “Divino” Cartola, Pixinguinha, Elton Medeiros, Paulinho da Viola e Clementina de Jesus. Artistas que ele descobriu. É algo que deve ser festejado, divulgado e enaltecido sempre, ainda mais no país que não é afeito a preservar a memória e a carreira dos artistas mais velhos e as obras que eles criaram e criam.

Então, saber que um artista do porte de Hermínio Bello de Carvalho, com 88 anos completos, está em plena atividade e criando como nunca, é motivo de enaltecimento, de orgulho e louvores para esse navegador que nunca cansa de navegar, esse timoneiro da memória e da criação, que não para de cataventar.


Em entrevista exclusiva para o Esquina da Cultura, HBC fala do show que fará neste final de semana (sábado e domingo), no Sesc Pinheiros, com participações luxuosas como Áurea Martins, Alaíde Costa , Ayrton Montarroyos e Vidal Farias. No repertório, as músicas do novo disco, quase todas de inéditas, que está sendo lançado pelo Selo Sesc, Cataventos.


Também aproveita os festejos das comemorações “tardia” dos 70 anos de carreira para lançar o livro Passageiros de Relâmpagos: crônicas friccionais e perfis inexatos, com histórias “inexatas” e saborosas da vida que viveu ao lado de tantas artistas e amigos, como a que contamos no início da matéria.


Envelhecer não é fácil, ainda mais sendo um artista que não para de criar, como é o caso do nosso patrimônio HBC, que tem muitos livros para lançar, muitas letras para serem musicadas e muitos artistas novos para descobrir e divulgar nesse mar revoltoso e que nunca serena, que é esse lugar chamado Brasil. Uma das descobertas, a de um iniciante jovem na música, Paulinho da Viola, que na época era ainda conhecido como Paulo César Batista de Faria, que ele apresentou para o Cartola num lugar mítico, o Zicartola.


“Não posso negar que não tenho um bom faro, seria [até] falso. Posso responder à sua pergunta de forma bem genérica e dando um exemplo. Conheci o Paulinho da Viola, ele com uns 20 de idade e frequentador, como eu, das rodas de choro promovidas pelo [compositor, instrumentista e arranjador] Jacob do Bandolim em sua casa em Jacarepaguá [Rio de Janeiro]. Um dos acompanhantes dele era o Benedito César [Ramos de Faria, conhecido como César Faria, violonista], pai de Paulinho [da Viola]”.


Antes da entrevista, caro leitor, escute uma das suas melhores músicas, com letra dele e música do seu eterno parceiro Paulinho da Viola, Timoneiro….


“E quanto mais remo mais rezo/Pra nunca mais se acabar/Essa viagem que faz/O mar em torno do mar/Meu velho um dia falou/Com seu jeito de avisar: Olha, o mar não tem cabelos/Que a gente possa agarrar/Não sou eu quem me navega/Quem me navega é o mar/Não sou eu quem me navega/ Quem me navega é o mar/É ele quem me carrega/Como nem fosse levar/É ele quem me carrega/Como nem fosse levar/Timoneiro nunca fui/Que eu não sou de velejar/O leme da minha vida/Deus é quem faz governar/E quando alguém me pergunta/Como se faz pra nadar/Explico que eu não navego/Quem me navega é o mar/Não sou eu quem me navega/Quem me navega é o mar/Não sou eu quem me navega/Quem me navega é o mar/É ele quem me carrega/Como nem fosse levar/É ele quem me carrega/Como nem fosse levar/A rede do meu destino/Parece a de um pescador/Quando retorna vazia/Vem carregada de dor/Vivo num redemoinho/Deus bem sabe o que ele faz/A onda que me carrega/Ela mesma é quem me traz/Não sou eu quem me navega/Quem me navega é o mar/Não sou eu quem me navega/Quem me navega é o mar/É ele quem me carrega/Como nem fosse levar/É ele quem me carrega/Como nem fosse levar/Não sou eu quem me navega/Quem me navega é o mar/Não sou eu quem me navega/Quem me navega é o mar/É ele quem me carrega/Como nem fosse levar/É ele quem me carrega/Como nem fosse levar!”


ENTREVISTA: HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO (HBC):


Esquina da Cultura: Uma vida dedicada à música, poesia e à cultura de uma forma geral, que pelo que li na sua biografia data de 1951, sem nunca parar, ininterrupta. Mas certamente houve tempos difíceis de trabalhar e criar. Quais foram esses tempos e o que eles ensinaram e motivaram para que você continuasse e tivesse a nítida certeza que tinha feito a escolha certa?


Hermínio Bello de Carvalho: A ditadura implantada em 1964 recrudesceu bastante em 1968 , quando fui despejado da Rádio MEC, sem indenização, sem nada. Muitos anos depois ganhei o processo que movi contra a Rádio, mas aí o estrago já estava feito dentro de mim. Eu adorava escrever para rádio, eu mesmo apresentando os programas. E quando o [presidente Fernando] Collor assumiu o poder, eu estava atuando na então TVE e novamente fui colocado no olho da rua.


Esquina: Você imaginaria lá atrás, comemorar 70 anos de vida profissional com o lançamento de um disco de música, quase todas inéditas e em parte com novos parceiros, um livro de crônicas e um show com participações muito especiais para você, como Áurea Martins, Vidal Assis e Ayrton Montarroyos no Sesc Pinheiros?


HBC: Eu não imaginava. A Joyce (Moreno) brinca sempre comigo por que eu vivia alardeando que eu não chegaria aos 40 [anos], cá estou eu, lindo e faceiro (rsrsrs) com 88 anos de idade e em plena atividade. Foi muito prazeroso trabalhar com tantos colegas, revelar novos parceiros, lançar mais um livro, Passageiro de Relâmpagos: Crônicas friccionais e perfis inexatos [Edições Sesc], que vai se juntar aos 20 e poucos já [livros] publicados. E um um CD Cataventos, repleto de participações especiais que suncê [Ao que parece, não confirmado, que Hermínio fala suncê ao invés de você, por isso, preferimos não “corrigir” para “você”] mesmo já as listou. E o disco tem uma participação super especial, a de Fernanda Montenegro "dizendo" um poema meu. Fiquei muito feliz com o resultado final do trabalho.


Esquina: No disco Cataventos, você traz antigos parceiros musicais com novos nomes, além de algumas composições ainda inéditas. Essa era a proposta do disco?


HBC: De alguma forma, sim. Discuti bastante com o produtor do disco, Helton Altman, e com o arranjador, Lucas Porto a respeito desse assunto. E inclusive é um CD Cataventos repleto de participações especiais que suncê mesmo já as listou. E o disco tem uma participação super especial, a de Fernanda Montenegro "dizendo”, e não declamando, sim, convencionalmente, de forma convencional. Fiquei muito feliz com o resultado final do poema e do CD Cataventos. E o disco tem uma participação super especial - a de Fernanda Montenegro "dizendo" um poema meu, que honra, que honra!!!

Esquina: Você viveu artisticamente vários períodos difíceis e tenebrosos no país como um Estado Novo, uma ditadura militar e um governo de extrema direita. Como esses períodos afetaram sua vida e sua criação? O que você pensa da política no Brasil e sobre a difícil arte de viver de cultura no país que sobrevive de solavancos na economia?


HBC: Quanto à sua outra pergunta, a respeito das barbaridades cometidas no país, faço um adendo. É bom nunca esquecer que o Fernando Collor, e depois o [Jair] Bolsonaro, durante seus mandatos como Presidentes da República, extinguiram impiedosamente o Ministério da Cultura, que só voltou a existir há seis meses pelo Presidente Lula. Vamos aguardar o desempenho da Ministra da Cultura [Margareth Menezes] e tomará que ela, pelo menos, anuncie a volta do Projeto Lúcio Rangel de Monografias dedicada ao estímulo à pesquisa e memória cultural do nosso pais. Ainda é muito prematuro fazer cobranças, não é um Ministério fácil de se dirigir.


Esquina: É espantoso e incomum um artista com mais de 70 anos de carreira e não fincá-la nos louros passados. O que lhe faz arriscar, além do que você classifica como “Gostar de trabalhar com estranhezas”? Dizem que você tem um enorme capacidade para descobrir e reunir novos talentos com artistas já consagrados, de onde vem essa aptidão?


HBC: Não posso negar que não tenho um bom faro, seria [até] falso. Posso responder à sua pergunta de forma bem genérica e dando um exemplo. Conheci o Paulinho da Viola, ele com uns 20 de idade e frequentador, como eu, das rodas de choro promovidas pelo [compositor, instrumentista e arranjador] Jacob do Bandolim em sua casa em Jacarepaguá [Rio de Janeiro]. Um dos acompanhantes dele era o Benedito César [Ramos de Faria, conhecido como César Faria, violonista], pai de Paulinho [da Viola]. Alguns anos depois, ele já meu parceiro, o levei à casa de samba "Zicartola" [Famoso restaurante, bar e casa de show, de propriedade de Agenor de Oliveira, o Cartola e sua esposa Dona Zica] e o apresentei ao “Divino” Cartola, que foi seu primeiro empregador e até pagou pra um ele [Paulinho da Viola] um cachê, o primeiro que recebia. Isso foi em 1962 ou 1963, e lembrando que o Zicartola fechou em 1965, deixando Cartola endividado. Nesse período, já parceiro e amigo de Cartola, fui também padrinho de casamento dele com Zica [Pseudônimo de Euzébia Silva do Nascimento, foi sambista da Velha Guarda da Estação Primeira de Mangueira e última esposa de Cartola], Jota Efegê [João Ferreira Gomes, famoso jornalista, cronista, pesquisador e musicólogo], também [foi padrinho].


Esquina: Você teve parceiros do samba da estatura de Pixinguinha, Cartola, Elton Medeiros, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara e Paulinho da Viola. Quais são as maiores lembranças que você guarda deles e como eles molduram sua carreira de letrista e poeta? Essa nova geração de sambistas ainda bebe nesses baluartes do samba?


HB: Sim, sem dúvida! Costumo dizer, em minhas entrevistas, que o público alvo de tudo que faço é a moçada da Escola Portátil de Música [Também conhecida como Casa do Choro, criada por músicos do choro em 2000] e seu quadro de maravilhosos Professores. Tive o privilégio de constatar, há mais de 20 anos, os primeiros passos que resultaram na sua criação e também o nascimento do Instituto Jacob do Bandolim que hoje integra seu organograma. Ir aos sábados para ouvir o “Bandão” [Grupo de músicos que reúne todos os alunos da escola, que se encontram semanalmente em um ensaio aberto dentro da instituição], formado por alunos das Escolas, é uma das coisas mais bonitas de se ver e ouvir. Hoje sou Presidente do Conselho Consultivo daquela instituição de ensino musical, presidida por Jayme Vignoli [Cavaquinista, arranjador, compositor e produtor musical], ele ao lado de uma turma de professores incríveis cujos nomes gostaria de citar aqui, inclusive, os ex "Matutos de Cordeiro" [Jovens músicos da cidade de Cordeiro, município do Rio de Janeiro]. Esse meu CD que vai sair pelo [Selo] SESC/SP [Cataventos], tem a participação de muitos integrantes da Escola Portátil [de Música], prova mais viva da importância dessa Escola e do Instituto Jacob do Bandolim, todos agregados ao organograma da Casa do Choro.

Esquina: Em grande parte das letras do seu novo disco Cataventos, o tema do amor desfeito e ingrato se sobressai. Relações amorosas que nunca terminam bem, restando mágoas, rancores, dores, ciúmes, etc e o reconhecimento de que “Dizem que todo amor/Um dia chega ao fim”. Lembra muito os antigos boleros, as músicas de Lupicínio Rodrigues e os as dores dos sambas antigos. Como nasceram as letras dessas canções, já estavam prontas há algum tempo? Fale um pouco desses amores desfeitos? Você sofreu muito de amor?


HBC: Sou, por natureza, um poeta/letrista desbragada e despudoradamente romântico e meus livros e minha produção musical exibem isso com fartura e sem qualquer constrangimento. E sou, e me exerço como tal, um fã de raiz daqueles que ficavam, como já fiquei, à porta da Rádio Nacional babando diante da Marlene, da Heleninha Costa [Cantoras], e nunca poderia imaginar que, no futuro, muitas daqueles estrelas se tornariam minhas amigas e até confidentes. Muitas vezes me senti um padre no confessionário ouvindo-as falar de amor, de frustrações, íntimas, de traições, amores impossíveis, essas coisas. Enfim, que fazem parte de nós, seres humanos que esbanjam sentimentos, os mais diversos. Sou resultado dessa grande comédia dramática (sim, isso mesmo), que é a vida e que é o tempo.


Esquina: O poeta Carlos Drummond de Andrade falava que não via poesia nenhuma no envelhecimento. Como você enxerga e entende seu envelhecimento?


HBC: Medo de envelhecer? Não tenho esse direito, sobretudo quando converso com minha amada amiga Fernanda Montenegro e me espelho nos alumiamentos que dela jorram constantemente. E como não agradecer ao meu Deus-Ciência, ao meu Deus-quântico, ela recitando um poema meu, em meu disco, porque, lá no fundo, continuo sendo aquele menino que soltava pipa, brincava com bolas de gude e se encantava diante de um catavento. Adoro cataventos.


Esquina: Já tendo feito tanta coisa e com tanta gente boa, você ainda tem sonhos como uma parceria nunca feita ou um intérprete que nunca gravou uma música sua?


HBC: Não carrego frustrações. O poder da criação felizmente ainda não anda se esgueirando de mim, pelo contrário. Continuo escrevendo poemas, memórias, canções e me sinto meio protegido por meus anjos da guarda que estão ornamentando a capa do [CD] Cataventos: Cartola, Pixinguinha, Clementina de Jesus, Mário de Andrade. Uma coisa é certa, nunca sacaneei ninguém e encosto a cabeceira no meu travesseiro e embarco nos sonhos os mais cinematográficos, cheios de cores e odores, lindos sonhos, raros pesadelos. Sonho com meus amigos, inclusive os que já partiram, nunca esqueço de todos aqueles que plantaram em mim as raízes brasileiras de meus trabalhos. Obrigado Walter Wendhausen [Artista Plástico nascido em Florianópolis, Santa Catarina], obrigado minha amada Aracy de Almeida e obrigado a suncês. Não sou eu quem me navega, e sigo pela vida afora com meus cataventos, cataventando o tempo todo.


SERVIÇO


“Cataventos”: Show de lançamento do álbum Cataventos em homenagem ao compositor Hermínio Bello de Carvalho. Participações de Alaíde Costa, Áurea Martins, Ayrton Montarroyos, Vidal Assis e Hermínio Bello de Carvalho.


Datas: 15 e 16/7. Sábado, às 21h. Domingo, às 18h.


Local: Teatro Paulo Autran


Classificação: 10 anos


Duração: 90 minutos


Endereço: Rua Paes Leme, 195 - Pinheiros, São Paulo /SP


Ingressos: R$ 15 (Credencial Plena), R$ 25 (meia) e R$ 50 (inteira) à venda no site e aplicativo Credencial Sesc a partir de 4/7, às 17h, e nas bilheterias a partir de 5/7, às 17h.

 

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