Logo na primeira cena do documentário Relatos do Front, um grupo de pessoas numa favela xinga, grita, se desespera. E ali, no meio de um amontoado de moradores, um rapaz está caído, sangrando. Ele foi alvejado durante uma operação policial no morro e sua vida está por um fio. Forte e impactante, essa cena irá guiar todo o restante do filme comandado pelo cineasta Renato Martins e que, ao contrário do que parece, tece uma fina crítica às guerras nos morros cariocas mostrando o lado de moradores e policiais.
"O filme nasceu de uma pesquisa que estava fazendo para meu longa de ficção. Começamos a ver muita coisa interessante e queria contar algumas histórias", diz o diretor em entrevista por telefone ao Esquina. "Aí o Sérgio Barata, policial lá do Rio de Janeiro [e roteirista do filme], também queria contar algumas histórias. Juntamos isso e tivemos a ideia de fazer um filme pra contar a história de pessoas que não são ouvidas."
Ao contrário de filmes recentes, como Marcha Cega e Auto de Resistência, Relatos do Front não é escancaradamente parcial -- como documentários, ao contrário de produções jornalísticas, podem ser. A todo momento, Martins buscar mostrar como os moradores sofrem com as operações policiais e estes, munidos pelo aparato do Estado, sofrem com as frequentes cobranças. É algo raro de se ver em produções documentais do tema no Brasil, já que o realizador tende sempre a enxergar apenas o lado humano.
Martins, enquanto isso, parece enxergar policiais e moradores como pessoas de um mesmo lado da balança. Um depoimento dado na primeira hora do filme exemplifica isso. Um policial mostra como ele compartilha da vida daquelas pessoas. Como também veio do povo e continua sendo do povo, mesmo numa farda. Nada de capitão do mato. Ele é apenas um homem em busca de sustento e que precisa cumprir com obrigações.
Do lado dos moradores, algo parecido. São pessoas marginalizadas e que, de alguma forma, também precisam buscar sustento. E, infelizmente, muitas vezes isso acaba por recair na criminalidade por meio do tráfico, roubo, contrabando e outras coisas do tipo.
"A gente teve essa preocupação o tempo inteiro. Queríamos equilibrar esses dois lados", disse o cineasta, quando questionado sobre o tom apartidário do documentário. "A gente não queria culpar ninguém, nem colocar ninguém específico como vítima. Todos são vítimas de uma cultura do nosso País. Essa cultura de violência, discriminação, tudo que a gente não queria mais ver, foi o combustível para fazer o filme. A gente ouviu as pessoas para ouvir o que elas têm a dizer. Não colocamos o outro sob nossa lente. O que mais aprendi nesse filme foi escutar. Não quero colocar minha história em nada."
Dessa maneira, mais do que tomar partido e acusar uma das partes, o documentário pega o assunto e faz algo extremamente necessário: realiza uma análise histórica e mostra como o Estado está por trás das duas condições. Do policial e do criminoso. E tudo isso embasado com argumentos de sociólogos, policiais, esposas de policiais mortos, mães de criminosos mortos, agentes da mídia independente, representantes de órgãos públicos. Tudo para mostrar, de maneira analítica, o desenvolvimento disso.
Claro, nem tudo são flores. O documentário, em determinados momentos, acaba por se demorar demais em alguns assuntos e coloca depoimentos que se sobrepõem, agregando pouco ao filme. Talvez Relatos do Front seria mais interessante se o longa tivesse uns 15 minutos a menos. Ficaria um pouco mais ágil e enxugado ao filme.
Mas, para Renato, o resultado é mais do que positivo. "A gente começou em 2015 e eu não imaginava que o que aconteceu iria rolar. É muito estranho", diz o diretor, se referindo à eleição de Jair Bolsonaro à presidência. "Agora, o filme vem no momento certo. Temos que refletir sobre o que aconteceu. E ele propõe uma reflexão. Não é perseguição. É uma reflexão sobre um problema grave que o País vive. Uma reflexão coletiva. A sociedade está doente. Precisa buscar os caminhos pra sair dessa situação."
Comments