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  • Foto do escritorMatheus Mans

Resenha: 'Qualityland' é o melhor de 2020 até então


Costumo ser bastante rígido nas minhas avaliações de leitura. Quem acompanha o Esquina sabe que são raras as quatro ou cinco estrelas por aqui, principalmente em livros contemporâneos. Assim, não tem como não destacar a qualidade da excelente distopia Qualityland, lançada no Brasil pela Tusquets Editores, da Planeta de Livros, e escrita pelo autor alemão Marc-Uwe Kling.


Usando elementos de inspiração de obras clássicas como 1984 e Admirável Mundo Novo, QualityLand cria um país inédito, tecnológico e possível ao longo de suas quase 350 páginas. O uso de dados foi massivamente amplificado, as propagandas estão em todos os lugares e o mundo vive a era da imersão digital total. Androides circulam por aí, carros e portas falam, etc.


Trama de 'QualityLand'


A partir daí, Kling se vale de uma série de personagens para construir um panorama geral desse intrincado e difícil mundo novo. Como fio condutor, principalmente, Peter Desempregado -- ah, sim, os sobrenomes são definidos de acordo com as profissões dos pais e das mães. Dono de uma loja de sucatas, ele tenta se reerguer em uma sociedade definida unicamente por níveis.


Isso mesmo: assim como Uber e afins, a sociedade é definida por níveis. Um nível baixo tem menos direitos, menos acesso, menos voz. Níveis mais altos, com boa educação, bastante dinheiro na conta e um romance estável, acabam tendo privilégios absurdos, como parar um metrô para embarcar ou, ainda, passar na frente da fila -- afinal, sua vida vale muito mais.

Peter, no caso, está lá embaixo. É nível nove, depois de fracassar em tentativas de emprego e ver seu romance com a bem sucedida Sandra ir por água abaixo. É o resto do resto.


Do outro lado, acompanhamos a jornada política de John of Us, um androide que é designado a concorrer as eleições de QualityLand. Afinal, ao contrário de humanos, ele não comete erros. O que seria melhor, então, para comandar um País? A partir daí, uma série de estratégias são elaboradas para que John consiga reverter os números das pesquisas e arrematar o governo.


O que funciona?


É impressionante, assim, como Marc-Uwe Kling consegue misturar elementos preocupantes dos dias de hoje (uso de dados, falta de privacidade, coisas do tipo); um futuro distópico extremamente plausível, mas criativo; e uma narrativa saborosa que nos faz pensar sobre a vida de John of Us (um androide, mas que é mais humano do que muitas pessoas) e Peter, no limbo.


Há uma qualidade impressionante na escrita, realmente comparável com obras como as já citadas 1984 e Admirável Mundo Novo. O poder de síntese do autor alemão, que coloca ordem no caos em que já vivemos, acaba deixando tudo ainda mais atemorizante -- apesar de um bom humor aqui e acolá, como as boas conversas de Peter Desempregado com androides quebrados.


A cereja do bolo, porém, está na voz ativa de Kling. Apesar da história dizer muito por si própria, ele faz com que suas ideias, percepções e observações povoem a narrativa de maneira invisível. Críticas claras e mordazes à direita e às fake news surgem aqui e acolá, mostrando como o autor não se exime de suas ideias e a faz viajar por meio de uma reflexão com os seus leitores.


E, por fim, vale ressaltar também uma boa sacada editorial de colocar pequenos excertos ao longo do livro. São artigos de jornais (repletos de propagandas, vale dizer), notícias e verbetes de dicionários que dão um sabor a mais para quem está lendo e dinamizam a relação entre leitor e história. Fica mais completo, fica mais divertido e muito mais gostoso de ler e entender.


Considerações finais


Enfim, QualityLand é uma surpresa agradabilíssima. Ainda que cause certa preocupação por conta da intensidade de suas ideias, perspectivas e narrativas, o livro fala do futuro e nos faz pensar sobre o presente. Vemos como o caos de dados, o reinado do Facebook e a falta de privacidade crescente pode levar as pessoas a um caos maior do que poderíamos pensar.


No final das contas, nada de Skynet ou um fim recheado com exterminadores robotizados andando por aí. A beirada do fim do mundo pode ser aquele "concordo com os termos" que você assina sem ler, os aparelhos inteligentes que sabem sua rotina ou a total dependência da tecnologia. Como alertou Blade Runner, talvez androides sejam mais humanos do que eu e você.

 
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