Crítica: ‘Entre Dois Mundos’ tem brilho de Binoche, mas apatia em discussão social
- Matheus Mans
- há 8 horas
- 3 min de leitura

Na essência, Entre Dois Mundos não poderia ser um filme mais atual. Estreia desta quinta-feira, 29, o longa-metragem tem uma proposta que vai direto ao ponto: fala sobre uma escritora e jornalista (Juliette Binoche) que decide “sentir na pele” o que é ser parte de um mercado de trabalho precarizado. Para isso, se junta a uma equipe de limpeza para entender o que há por trás desse mundo e, principalmente, como essas pessoas vivem.
Dirigido por Emmanuel Carrère, de Amores Suspeitos, o longa-metragem não traz um tema que seja novidade. Afinal, desigualdade social, precarização do trabalho e coisas do tipo são assuntos tratados desde o neorrealismo italiano até, mais recentemente, ao cinema do britânico Ken Loach, de filmes brilhantes como Eu, Daniel Blake e Você Não Estava Aqui.
Carrère, porém, passa longe dessas referências. Não por trazer uma ideia disruptiva ou coisa do tipo, mas pelo cerne da narrativa. Enquanto Loach e o neorrealismo italiano falam sobre as pessoas que experienciam essas situações que o cinema-denúncia quer expor, este novo longa-metragem francês não foca em entender realmente quem são as vítimas do sistema. Pelo contrário: terceiriza a responsabilidade para uma escritora de classe média.
Dessa forma, Entre Dois Mundos se torna uma experiência quase asséptica em que o espectador possui uma intermediadora (quase uma tradutora, talvez) entre ele e o extrato social que é vítima da precarização. O longa nunca compreende de fato quem são essas pessoas, o que pensam, o que sentem. O foco é alguém se fazendo passar por elas, algo muito distante do que faz Loach, que vai direto no centro da investigação e da preocupação.
Binoche, que acabou de ser a presidente do júri de Cannes, até ajuda a dissolver essa bagunça inicial que se instala logo de cara, com uma atuação contundente -- por causa dela, não sentimos raiva dessa mulher enganando outras pessoas. O tom é suavizado.
Isso, porém, não anula o fato de que o texto do longa-metragem, inspirado na história real de Florence Aubenas e roteirizado por Carrère e Hélène Devynck, se agarra em uma visão exageradamente liberal e de classe média que pensa entender pessoas de classes sociais mais baixas. Oras, se o longa quer investigar a vida de operários, precisa falar sobre operários; se quer entender como vivem os moradores de rua, precisa falar sobre eles.
E essa discussão não é sobre o ato de fazer cinema. Carrère não precisaria fazer como os italianos e colocar atores não-profissionais na frente das câmeras para traduzir a verdade. Só o fato de falar sobre essas pessoas, mesmo com um ator profissional interpretando-as, já seria de valia. Só pensar no bom resultado de Nomadland, filme vencedor do Oscar e um tanto subestimado. Chloé Zhao se vale do trabalho de Frances McDormand para falar sobre a precarização do trabalho nos Estados Unidos -- ainda que com não-profissionais ao redor.
O que importa é como a mensagem é passada, como essa realidade é compreendida e, acima de tudo, como isso tudo é colocado na tela. Colocar um intermediador, ou tradutor, apenas aumenta a distância entre o público e os retratados. É um discurso bastante neoliberal que favorece o distanciamento e que acredita ser necessário que uma pessoa viva o dia de outra para compreendê-la -- como foi o caso de um escritor e influenciador que viveu como morador de rua para escrever um livro sobre uma suposta máfia.
Obviamente, Carrère não chega nesse nível de suspensão da realidade, mas dificulta a compreensão do que queria contar. Entre Dois Mundos é isso que o título sugere, mesmo sem querer: o espectador fica ali, perdido em um vácuo, enquanto duas camadas sociais interagem, mesmo sem saber. O resultado é opaco, longe de Loach ou do neorrealismo italiano, por mais que essas denúncias sejam mais do que necessárias no mundo atual.


コメント