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  • Foto do escritorMatheus Mans

Um mergulho na literatura de Manoel de Barros, o poeta das pequenas coisas


O mundo, no momento que escrevo este texto, vive uma pandemia de coronavírus. As pessoas estão refugiadas dentro de suas casas, em quarentena, esperando que o pior passe. E com isso, surge uma forte reflexão: este é o momento mais importante de se valorizar as coisas ao nosso redor, as pequenas particularidades do dia a dia. Isso, no fim das contas, se tornou nossa rotina.


Assim, acredito que este seja o momento mais importante para nos aprofundarmos em Manoel de Barros. E não só neste período, leitor que vem do futuro e de uma sociedade que já ultrapassou as barreiras da covid-19. A partir desse momento de reclusão, é cada vez mais urgente a necessidade de se apegar às pequenas coisas ao redor. O quintal, a planta, a vida.



A quarentena, por enquanto, deve servir como uma lupa na obra de Manoel de Barros. Ele, sempre profundo e observador, nos trouxe vivências que ao longo dos últimos anos ignoramos. Quem sabe, a anormalidade que surgirá depois do período de reclusão será a normalidade de Manoel de Barros. Mergulhos mais íntimos, pessoais, em que a pequenez se junta ao coletivo.


O poeta, que teria completado 100 anos em 2016, mirava suas grossas lentes, sustentadas numa armação de óculos marcante, para tudo que existia e não era enxergado como poesia. Num estilo muito particular, que por vezes foi comparado com a prosa de Guimarães Rosa, ele destacava o que era descartado. Principalmente numa sociedade de consumo exagerado.


“Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade.”

Ou seja: o "poeta do Pantanal", há décadas, imprimiu uma experiência própria sobre o que é viver. Hoje, num estado de quarentena e isolamento social, em que o consumo excessivo se torna até mesmo difícil, precisamos aprender a olhar para dentro de nós. Depois disso, ainda fica a lição: será que viver em sociedade não é olharmos mais para o nosso próprio quintal?


A obra de Manoel de Barros


Ao longo de sua carreira, Manoel de Barros escreveu 18 livros de poesia, textos infantis e relatos autobiográficos. O quintal, como evidenciado na frase do poeta acima destacada, exerce forte fascínio nos seus textos. Pequeno espaço, mas refúgio ao exterior, o quintal é a deixa para que as pessoas explorem o mundo sem sair de si próprios. É ali que se descobre novos universos.


O quintal também é o espaço para que a pessoa volte à sua infância, às suas memórias. É a pedrinha chutada, a porta usada como gol, o muro mijado. É uma exploração de espaço e de vida. O lixo vira luxo. Ele encontra nas pré-coisas -- como dizia o próprio Manoel -- um sentido para algo além do que os olhos podem enxergar. O espaço se torna indutor de algo a mais.


Ou seja: há no quintal o sentido figurado. O pesquisador Adris André de Almeida, conforme destacou um excelente artigo do Blog da Companhia das Letras, falou extensamente sobre a memória e a imaginação de Manoel de Barros no seu mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina. Inclusive os campos que se abrem a partir do quintal.


"Ler é viver espaços. Escrever também o é. Para alguns escritores, o espaço vivido (seja pelas mãos ou pela imaginação) é tão importante que é difícil não associar seu nome a determinado lugar", diz o pesquisador, no trecho destacado pelo blog da Cia. "É o caso de Manoel de Barros”.


Para ampliar o alcance desse seu olhar, Manoel também se valeu de um artifício que deu ainda mais tônica à sua literatura: dar voz às coisas. E não no sentido de fábula. Mas na ideia de "empoderar" o que não existe aos nossos olhos. Para os caracóis, por exemplo, ele imagina que há um desejo ardente em voar. Manoel de Barros dá forma ao que some perante nossos olhos.


“Não me atrai o chão da lua. Não sou capaz de pensar nele. O que haveria lá? Teria mamoeiro no quintal? Eu gosto de alguma coisa que na infância eu tenha mijado nela. Uma parede de barrotes. Um morrinho de formigas. ‘Chão da lua’! Fica tão longe e tão cerebrino pensar nisso. Bugre não desprega da terra pra isso. Nem sequer fareja esse lugar tão distante. Nossos pés se molhariam no orvalho da lua? Vai ter orvalho lá? Vai se chamar rocio ou orvalho? E como será o falar? Vai ter água na boca? Córregos por perto? Árvores carregadas de passarinhos? Assunto que não me preocupa há de ser esse de chão da lua. Eu perco os meus contornos. Deixo de saber”

O homem se confunde com a natureza, volta a fazer parte do entorno. Volta a fazer parte de algo maior, saindo de sua insignificância individual para insignificância coletiva. No entanto, quando em coletivo, há um senso de pertencimento poderoso e que mexe com emoções, sentimentos e, de novo, memórias. Manoel Barros desperta isso em quem mergulha em suas mirradas letras.


Veja abaixo a força no poema A Vida Por Trás de um Prego Enferrujado, lido por Cássia Kis:

Além disso, por meio da observação desses pequenos objetos e acontecimentos casuais, Manoel resgata a infância, a origem, a memória. Quando observamos nosso quintal, logo nossas memórias, retornamos à nós mesmos. Examinamos e mergulhamos em pontos que, em outros tempos, estavam esquecidos. Um luz é jogada sobre a memória, antes plena de escuridão.


A origem de nós mesmos se entrelaça com a origem das coisas. As naturezas se confundem. E isso torna toda a experiência de ler Manoel de Barros mais forte, desafiadora e interessante.


“Ele tem certa obsessão pela origem das palavras, estuda a etimologia de um termo até achar o 'feto' verbal", disse Érika Bandeira de Albuquerque, mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco. "Pode-se concluir que esse ato seria a redescoberta da infância de determinada palavra, como ela nasceu e se desenvolveu ao longo dos séculos”.


Dessa forma, Manoel de Barros reafirma seu olhar para o que não é olhado. Cria uma hiper-realidade, uma outra forma de viver. Há uma mistura inteligente entre a vida do pantanal com a pré-palavra, como destaca Italo Moriconi no prefácio da Companhia das Letras para novas edições de Poemas concebidos sem pecado + Face imóvel, além de gravuras do próprio Manoel.


"Hiper-realidade, ecologia, estética do resto. Há, na verdade, hibridismo, mútua fecundação entre natureza e hiper-realidade", diz o pesquisador. "Pré-coisas, pré-dicionário. Do aquém da pré-palavra ao além da neo-palavra. O além do aquém é o hiper-real da linguagem. Totalmente alheio a esta poesia é o sublime do empíreo, do celestial. Trata-se de uma poesia aferrada à terra, ao chão, ao corpo. Quando voa, é voo de animal passarinho. Se 'espírito' é uma palavra para imaterial, aqui o imaterial está no próprio material, no desdobramento infinito do material".


Por que e como ler Manoel de Barros


Não há uma receita para mergulhar na literatura de Manoel de Barros, obviamente. O que recomendo -- e, vale ressaltar, é uma recomendação pessoal -- é primeiro entender quem era Manoel. Entenda sua figura, seus pensamentos, seu gesto, seu estilo de vida. A forma como ele enxergava a profissão de poeta -- "se tornar um inútil", nas suas bem-humoradas palavras.


Na entrevista abaixo, por exemplo, é possível enxergar um pouco dessas facetas do "poeta do pantanal" -- título, aliás, que ele rejeitava. Ignore as interrupções de Bruna Lombardi e aproveite:

Depois disso, é se jogar nas letras do mato-grossense. Minha aventura, em particular, começou com uma coletânea publicada pela Editora Leya, que trouxe as obras de Manoel de Barros em ordem cronológica. Mas isso é bobagem. Leia Manoel em gotas, um poema por dia. Leia de uma vez só. Leia um livro por mês. Não importa. O que vale é dar uma chance para suas poesias.


Afinal, Manoel surge como o raio de luz depois da tempestade. Vivemos anos com os olhos enfiados nos celulares, numa rotina sem interrupção. Nessa pausa que a vida nos deu, forçosamente, aproveita para se entender melhor, entender seu entorno e compreender tudo aquilo que lhe alcança a vista. E garanto: a literatura de Manoel de Barros é o melhor caminho.

 
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